Um líder morto e o ano indígena

O Globo, Economia, p. 14 - 30/12/2021
Um líder morto e o ano indígena

Por Míriam Leitão

30/12/2021 - 04:30

Piraíma'á subiu numa árvore bem alta para caçar e de lá despencou. Uma queda acidental. Ainda falou algumas palavras, antes de morrer. O fato ocorreu no domingo, 26. Tinha, segundo Patriolino, um funcionário da Funai, 48 anos. Piraí, como era conhecido, era líder do povo guajá na aldeia Juriti, na Terra Indígena Caru, no Maranhão. Quando estive lá com o fotógrafo Sebastião Salgado, foi o que falou de forma mais eloquente do que todos os outros sobre os riscos do desmatamento.

As horas finais antes do seu enterro, na segunda-feira, mostram a dureza do cotidiano indígena. Os que o acompanhavam andaram até a aldeia, chegando lá às seis da tarde. Foram buscar reforços e avisar à Funai. Voltaram andando pela mata na enorme distância até o local onde ele havia caído. De lá trouxeram o corpo, chegando a uma da manhã. Quem me contou tudo isso foi Salgado, repassando áudio do amigo Agostinho de Carvalho:

- Você veja seu Salgado o quanto é longe, eles vieram às seis da tarde no Juriti, na aldeia, e voltaram lá para o igarapé do Juriti, de noite, e lá apanharam ele do outro lado do igarapé e quando deu uma hora da manhã chegaram com ele no posto da Funai. Veja como o índio anda, você conhece aquela distância. Só índio mesmo para fazer um percurso daquele.

Nos Awá Guajá não há uma liderança única, um tuxaua. Há várias lideranças que se destacam. Piraí era claramente uma voz forte dos Guajá. O povo é considerado de contato recente, só os mais jovens falam português. Uma liderança dessas que se vai tão cedo é uma enorme perda.

Esse foi um ano de ameaças, perdas, resistência e vitórias para os indígenas brasileiros. No Vale do Javari morreu, em outubro, uma forte liderança dos povos da região, Ivininpapa Marubo. Segundo a União dos Povos do Vale do Javari, ele foi "um estadista, um humanista, um autêntico líder ancestral, era o cacique geral do povo marubo". Uma das maiores preocupações de Ivininpapa era com os retrocessos das políticas públicas em relação à proteção territorial e da proteção dos povos indígenas.

Houve, ainda, o cerco às terras indígenas pelos garimpeiros, grileiros e madeireiros. No STF, o julgamento da tese do marco temporal foi visto como o maior risco e seis mil indígenas acamparam na capital. No Congresso, tramitam projetos que restringem a demarcação de terras indígenas, além da proposta do governo Bolsonaro de liberar mineração em terras indígenas. Um dos projetos mais ameaçadores é o PL 490, que restringe a demarcação de terras indígenas.

- O projeto passou na CCJ da Câmara e a Comissão de Agricultura, que já o analisou, pediu que vá direto ao plenário. O PL, além de restringir a demarcação, traz a tese do marco temporal para a legislação e ainda tenta regulamentar o garimpo em terra indígena. A Constituição proíbe e por isso não poderia mudar por PL, mas eles tentam -explica Adriana Ramos, do Instituto SocioAmbiental.

Apesar de tudo, os primeiros povos do Brasil contaram algumas vitórias neste ano difícil para todos, indígenas ou não.

- Eles se mobilizaram, mostrando uma grande capacidade de resistência e luta. Evitaram a aprovação do marco temporal, mas o assunto voltará a ser julgado em junho. A presença dos líderes indígenas na COP26, principalmente da Txai Suruí na abertura, mostrou a atenção do mundo sobre o assunto -completou Ramos.

Pela visão do seu povo, Piraima'á agora é um karauara e na sua vida após a morte ele viverá numa floresta celestial, com conexão com o mundo daqui.

"Se eu morrer, minha pele fica na Terra, as pegadas do meu pé ficam na Terra. Minha pele torna-se a . Meu coração, minha alma e minha carne vão para o céu, tornam-se karauara. Ficam dançando e cantando, transformados em karauara. As penas brancas e vermelhas (que adornam os karauara) ficam no céu." Isso está escrito no livro "Crônicas de caça e criação" de Uirá Garcia, o antropólogo que mais estudou o povo Awá Guajá.

Enquanto viveu, Piraima'á protegeu parte do território brasileiro da invasão de grileiros e de madeireiros. Com os seus parentes, como eles se chamam, defendeu nosso patrimônio natural, vivendo da e para a floresta, entendendo cada parte daquela terra que parece um paraíso verde cercado de devastação por todos os lados. Num descuido em cima de uma árvore, Piraí escorregou e voou no ar antes da queda fatal. Suas pegadas ficarão na Terra.

Com Alvaro Gribel (de São Paulo)

https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/um-lider-morto-e-o-ano-indigena.html

O Globo, 30/12/2021, Economia, p. 14
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