Korubos: Surto de Covid atinge 70 por cento dos indígenas em aldeias de recente contato na Amazônia

O Globo - https://oglobo.globo.com/brasil/ - 28/02/2022
Korubos: Surto de Covid atinge 70% dos indígenas em aldeias de recente contato na Amazônia
Contaminados vivem no Vale do Javari , próximo a grupo de isolados, e ainda não receberam a terceira dose da vacina; por terem resposta imunológica menos eficiente para combater infecções virais eles são ainda mais vulneráveis ; entidade fala em risco de genocídio

Daniel Biasetto
28/02/2022

Um surto de Covid-19 entre os indígenas korubo, no Vale do Javari, na Amazônia, acendeu o alerta para o risco iminente de contaminação de outros grupos de recente contato existentes na região, onde há maior concentração de povos isolados do mundo. O GLOBO apurou que mais de 70% dessa etnia (75 de 103 indivíduos) que vive entre os rios Coari e Ituí, no município de Atalaia do Norte, testaram positivo para a doença nas duas últimas semanas. A contaminação dos korubo põe em xeque o plano do governo federal de combate à Covid nas aldeias e comprova que a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) falharam diante da determinação dada há cerca de dois anos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de instalar barreiras sanitárias em locais estratégicos.
Esses são os primeiros casos de coronavírus registrados desde o início da pandemia entre os korubo, cuja cobertura vacinal não está completa. A informação sobre as contaminações consta em ofício enviado pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) à Funai e à Sesai, vinculadas ao Ministério da Justiça e da Saúde, respectivamente. A Sesai admite o surto e diz que os casos estão sendo monitorados.
O GLOBO teve acesso também a um áudio em que um tradutor korubo relata a situação nas aldeias próximas do Coari, onde vive o grupo de mais recente contato. Ele confirma os casos de Covid e diz que os indígenas contaminados apresentaram, até o momento, sintomas "moderados" da doença. Na última sexta-feira, o drama dos korubo foi discutido na Sala de Situação criada pelo STF para atender os povos isolados na pandemia. Representantes do governo, Funai e Sesai, estavam presentes e foram questionados sobre a crise sanitária por entidades indígenas.
A presença de invasores na região, além dos próprios agentes da Sesai e demais indígenas que circulam por Atalaia do Norte e retornam às aldeias são apontados como vetores e possíveis agentes transmissores da doença que afeta mais da metade dos korubos.
No total, de acordo com o levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), 1.283 mortes ocorreram em função da Covid nas aldeias e em contexto urbano desde o início da pandemia entre 162 povos afetados em cerca de 70 mil casos.

Risco de genocídio
O que preocupa as entidades é o fato de esses indígenas contaminados terem acesso direto a outros korubos que vivem no Coari, recém contatados em 2019 e considerados ainda mais vulneráveis por terem resposta imunológica menos eficiente para combater infecções virais, como o coronavírus, e bacterianas. Há ainda na região um grupo da mesma etnia que vive em situação de total isolamento e, portanto, não foi vacinado.
Um Só Planeta: Servidores da Funai e do Meio Ambiente de MT são alvos de ameaças e emboscadas
O coordenador da Univaja, Beto Marubo, diz que a contaminação traz grande preocupação e não descarta o genocídio de grupos de isolados, caso o vírus se prolifere floresta adentro. Ele culpa a Funai por não cumprir o que fora determinado pelo relator do caso no Supremo, ministro Luis Roberto Barroso, na ação que cobra medidas do governo. Quatro versões do plano foram rejeitadas por Barroso, que viu "profunda desarticulação" do estado para conter a Covid-19 entre indígenas, mas homologou parcialmente o plano crente que seria levado a cabo suas determinações.
- Aconteceu tudo aquilo que o movimento indígena mais temia e que devido a essa preocupação nós procuramos o STF. É uma situação que os indígenas já vinham avisando o Supremo e o Barroso deu oportunidade para Funai mentir. A Funai tem mentido até agora descaradamente para o STF informando que está cumprindo a ADPF 709 (ação que cobra do governo medidas de proteção nas aldeias) e, na prática, não tem feito nada, tanto que a doença chegou aos índios de recente contato da minha terra. Há dois anos a Funai segue com essa retórica mentirosa e agora demonstra, na prática, sua total inoperância sobre todas as denúncias apresentadas ao ministro. Continua sendo feito um trabalho paliativo, não consistente, como se deve, como foi determinado na ADPF - diz Marubo ao acrescentar:
Índios Korubo contatados em 2015 Foto: Agência O Globo
- A probabilidade de o coronavírus chegar tanto entre os isolados quanto a outros povos de recente contato é muito grande. A diferença é que alguns indígenas infectados conseguem ser atendidos no posto da Sesai. Os isolados não. Eles voltam para aldeias deles e se infectam entre si e morrem. Então, a possibilidade de um genocídio é real nesse contexto - afirma.
Procurada, a Funai diz que mantém o Plano de Enfrentamento à Covid-19 "em conjunto com vários órgãos governamentais, incluindo a Sesai, com a qual atua em parceria". Questionada sobre o que saiu de errado no plano diante das contaminações, o órgão devolveu a questão para a Sesai.
"Dados sobre a saúde indígena devem ser solicitados junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai/Ministério da Saúde), que possui a competência institucional de coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) no Sistema Único de Saúde (SUS)", diz a nota que ignora a instalação de barreiras sanitárias.

Cobertura vacinal
De acordo com a Sesai, os primeiros casos de Covid-19 entre os indígenas da etnia Korubo ocorreram no último dia 14 de fevereiro, no Polo Base Médio Ituí, e foram notificados pela Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena. "No dia 15 de fevereiro, o DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena do Vale do Javari) enviou imediatamente a Equipe de Resposta Rápida para avaliar o cenário epidemiológico nas aldeias", diz o órgão.
Até o momento, dos 75 casos confirmados entre os korubos, 43 se encontram em cura clínica e 32 seguem em monitoramento diário pelas equipes de saúde, todos "sem apresentar sintomas de síndrome gripal", afirma a Sesai. O órgão diz ainda que os índices de vacinação contra a Covid-19 em pessoas acima de 18 anos, até o dia 21 de janeiro, no Vale do Javari, são de 87% para a primeira dose; 82% para a segunda; e 21% para a terceira. No entanto, admite que entre os korubo ainda não foi aplicada a terceira dose.
Já entre os indígenas mais jovens do Vale do Javari a situação é ainda mais delicada. Nenhum adolescente de 12 a 17 anos recebeu sequer uma dose do imunizante.
Falhas nos protocolos e invasões
O controle do fluxo de indígenas pelos rios do Vale do Javari tem acontecido de forma precária, sustenta a Univaja, assim como o atendimento dos agentes de saúde aos povos de recente contato durante a pandemia. De acordo com Marubo, para além da inexistência das barreiras sanitárias em pontos-chave da terra indígena, outro fator que preocupa é o aumento das invasões por caçadores e pescadores ilegais, que se aproveitam da fiscalização frágil e atuam nos mesmos caminhos e rios usados por índios isolados.
- Os protocolos foram feitos apenas para quem estava na aldeia, mas o trânsito no rio está livre, o fluxo e movimentação de pessoas continuaram sem a instalação de barreiras sanitárias. Elas não foram feitas, nunca existiram. Era um argumento falacioso da Funai que a barreira era a própria base, e a gente sempre argumentou que não, que era para ter uma barreira sanitária independente da base. Até poderia ser na base desde que fossem ao menos exigidos os protocolos sanitários conforme vinham sendo preconizados pelo Ministério da Sáude - afirma Marubo, que denuncia o aumento de invasores como um dos fatores que amplia o risco de a doença ser disseminada entre os indígenas isolados.
- Foi determinada na pandemia pelo STF que a Funai e a Sesai montassem as barreiras sanitárias. Uma barreira para impedir a entrada de pessoas contaminadas, além do cumprimento rigoroso da quarentena de 14 dias para entrar nas aldeias. Uma fiscalização que impedisse a entrada não somente dos indígenas que circulam por ali, mas também dos criminosos ambientais, dos invasores, caçadores ilegais, pescadores ilegais, por que o mesmo território por onde habitam os isolados esta sendo compartilhado com os invasores. A Funai em nenhum momento atuou na vigilância.

Quatro contatos
Os korubo foram contatados pela primeira vez em 1996, depois outras três expedições de contato foram realizadas, sendo a última delas em 2019. Eles têm por hábito cultural dormirem em uma mesma maloca, em geral com apenas uma porta em cada extremidade da oca, sem janelas, o que facilitaria ainda mais a contaminação.
Além dos korubos, habitam o Vale do Javari os povos marubo, mayoruna, matis, kanamari, tsohom Djapa, e kulina pano. Há ainda o registro de ao menos 15 povos isolados, dos quais dez já foram confirmados e outros cinco estão em estudo.
Localizada no oeste do Amazonas, na fronteira com o Peru, a Terra Indígena Vale do Javari teve seu processo de demarcação finalizado no governo Fernando Henrique Cardoso, em 2001, e possui uma extensão territorial equivalente a quase dois estados do Rio de Janeiro (85,4 mil km²). É considerada a segunda maior demarcação depois da Terra Yanomami (96, 6 mil km²), homologada em 1992, pelo ex-presidente Fernando Collor.

https://oglobo.globo.com/brasil/korubos-surto-de-covid-atinge-70-dos-indigenas-em-aldeias-de-recente-contato-na-amazonia-1-25413210
PIB:Javari

Áreas Protegidas Relacionadas

  • TI Vale do Javari
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.