Violência contra menina yanomami expõe nossas incertezas sociais

Valor Econômico, Eu & Fim de Semana, p. - 06/05/2022
Violência contra menina yanomami expõe nossas incertezas sociais

Por José de Souza Martins

A notícia de que uma menina yanomâmi de 12 anos de idade havia sido sequestrada, estuprada por um grupo de garimpeiros de um garimpo ilegal e assassinada, em Roraima, despertou indignação e medo nos últimos dias. Sobretudo aumentou nossas incertezas sociais.
A denúncia foi de Júnior Hekurari Yanomami, jovem líder indígena, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomâmi e Ye'kwana. Os garimpeiros invadiram a comunidade e sequestraram uma mulher, uma criança de 4 anos e a adolescente. A criança caiu no rio.
A situação de risco étnico na Terra Indígena Yanomâmi vem sendo denunciada há tempos. Com dados de 2021, a Hutukara Associação Yanomâmi e a Associação Wanasseduume Ye'kwana, duas entidades que se ocupam da situação e dos problemas dessa população, com apoio do Instituto Socioambiental, publicaram neste abril de 2022 o bem fundamentado documento a respeito: "Yanomâmi sob ataque - garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomâmi e propostas para combatê-lo".
O estudo, com base em fotografias de satélite, mostra que naquela área há imensas cicatrizes na floresta, a dos 19 garimpos, que cresceram 46% do ano passado para cá. Há nela cerca de 200 aldeias yanomâmi, algumas de índios ainda não contatados e completamente vulneráveis ao assédio dos garimpeiros.
Já aconteceu antes, quando a probabilidade de mudança de governo incrementou ações de grilagem de terra, de invasão de terras indígenas, de desmatamento ilegal e de violência contra populações tradicionais do campo. Essas modalidades de violência sugerem que os beneficiários das formas ilegais e predatórias de economia, implicitamente apoiados pelo governo atual, intuem que os resultados da próxima eleição mudarão o cenário de omissões e de medidas antissociais de que se valem.
A degradação ambiental e a alteração das condições de vida dos índios têm disseminado carências e fome. O equilíbrio na relação do nativo com a natureza foi rompido, o que compromete sua própria sobrevivência. Mulheres têm sido objeto de violência sexual em troca de comida. Bebidas alcoólicas e drogas têm sido oferecidas a adolescentes dos dois sexos como meio de criar dependência e vulnerabilidade.
Darcy Ribeiro, em um estudo antropológico referencial, "Os índios e a civilização", escrito à luz de amplo material etnográfico, conclui que o contato dos índios brasileiros com o branco tem sido feito com o pior tipo de branco. No fundo o que não nos representa nem representa as grandes conquistas do humanismo, da civilização e do reconhecimento da relevância humana da diferença e do direito à diferença.
A tragédia repercutiu no STF, na palavra firme e clara da ministra Cármen Lúcia, do STF: "Acho que não é mais possível calar ou se omitir diante do descalabro de desumanidades criminosamente imposto às mulheres brasileiras, dentre as quais mais ainda as indígenas, em situação de enorme vulnerabilidade, que estão sendo mortas pela ferocidade desumana e incontida de alguns".
Um amortecimento crescente da consciência social, sobretudo a partir dos anos 2010, uma clara inversão de valores, que se manifesta até mesmo em seitas e religiões cada vez mais identificadas com o dinheiro do que com caridade e a corresponsabilidade, vão definindo uma espécie de nova personalidade básica do brasileiro, intimidada, retraída, oposta a tudo que acreditávamos ser. Está em andamento um vasto projeto de disseminação de medo e insegurança para nos mostrar quem é que manda.
Não só o índio, o mais desvalido, mas o negro, o pobre, a mulher, a criança, o idoso, o morador de rua também são vítimas de ocorrências cada vez mais visíveis e disseminadas de tratamento incompatível do outro com a condição humana.
Nos últimos anos cresceu não só o número de denúncias de atos de extrema violência contra mulheres por parte do marido ou companheiro, como cresceu o número de casos de estupro de crianças, até de bebês, não raro por gente da própria família. Ou seja, a sociedade brasileira está mergulhada num profundo estado de anomia, como se não tivesse regras sociais próprias de uma sociedade normal e civilizada.
Não é raro que as sociedades se desorganizem. Raro é que sejam nelas frágeis os mecanismos compensatórios de regeneração das relações sociais violadas e de produção de relações que instaurem um novo padrão de relacionamentos, em patamar mais desenvolvido e mais civilizado.
Aqui, os mecanismos sociais de superação da anomia e dos fatores de desordem não têm tido o vigor necessário para compensar a decomposição dos valores sociais de referência da conduta socialmente sancionada. Pior mesmo é que vão surgindo evidências de uma aceitação tácita da normalidade do que é anômalo.

José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Fronteira - a de- gradação do outro nos confins do humano" (Contexto).

Valor Econômico, Eu & Fim de Semana, p.

https://valor.globo.com/eu-e/coluna/jose-de-souza-martins-violencia-contra-menina-yanomami-expoe-nossas-incertezas-sociais.ghtml
PIB:Roraima/Mata

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