"Povo Yanomami vive seu pior momento", afirma antropóloga Hanna Limulja

Mais O Povo - https://mais.opovo.com.br/reportagens-especiais/leituras - 02/06/2022
"Povo Yanomami vive seu pior momento", afirma antropóloga Hanna Limulja
Na estreia do Leituras, OP+ entrevista a antropóloga Hanna Limulja que está lançando o livro "O desejo dos outros. Uma etnografia dos sonhos Yanomami". Na publicação ela mergulha no mundo onírico dos Yanomami. Nesta conversa, Hanna reflete sobre o impacto do garimpo sobre o povo Yanomami neste momento em que se completam 30 anos da homologação das terras deste povo indígena. listagem seriada
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"Povo Yanomami vive seu pior momento" , afirma antropóloga Hanna Limulja
Episódio 1
Publicado 02 de Jun de 2022
Por Regina Ribeiro

A primeira vez que Hanna Lamulja entrou em terras Yanomami foi em 2008 quando trabalhou como assessora pedagógica em escolas de várias regiões do território indígena. Para chegar à região de Pya ú, uma das comunidades que precisava visitar, a viagem começa com o trecho da travessia de barco pelo rio Toototopi, próximo da fronteira de Roraima com a Venezuela.
No entanto, as chuvas intensas elevaram o nível do rio, dobraram a vegetação das margens e impediram a aproximação do barco que a conduzia junto com a bagagem, além do indígena que a levaria à região. O jeito foi descer da embarcação, atravessar parte do rio e, depois, seguir quatro horas de caminhada floresta adentro. "O máximo que eu havia feito eram duas horas de caminhada quando estava na terra dos Yanamami do lado da Venezuela", lembra.
A experiência ficou marcada. Após andar horas pela floresta, "do nada, você avista uma maloca gigante", relembra. "Eu guardo essa, cena porque foi incrível". Havia chegado à maloca dos Yanomami, em Pya ú, povo a quem, talvez, esteja para sempre ligada. "Pensei que se um dia voltasse a campo para estudar, seria naquele lugar".
Alguns anos mais tarde - entre 2015 e 2017 -, cumpre a promessa. Desta vez, a antropóloga Hanna Lamulja, voltava ao de Pya ú, - atualmente chamada Kayani -, para investigar os sonhos dos Yanomami.
O resultado do trabalho está no livro "O desejo dos outros. Uma etnografia dos sonhos Yanomami" (Ubu,22), que Hanna está lançando. A obra também comemora os 30 anos de demarcação do território indígena dos Yanomami, em 1992, e quer também cumprir papel de denúncia e reflexão.
Embora a obra não aborde o drama do garimpo que voltou com força àquele território, Hanna afirma que "este é pior momento que o povo Yanomami se encontra". Segundo Hanna, as novas estruturas e esquemas de comunicação por meio da internet permitem que "verdadeiras cidades existam em terras Yanomami", e que isso tem "um efeito devastador para a comunidade".
Atualmente, Hanna integra a Rede Pró-Yanomami e Ye´kwana, um coletivo que une pesquisadores em luta pelos direitos territoriais, culturais e políticos desse povo. A renda da venda do livro será revertida para Associação Yanomami Hutukara.
A entrevista abaixo é um passeio pelos sonhos, mitos e cultura do povo Yanomami.
O POVO - O que significou o seu encontro com o povo Yanomami?
Hanna Limulja - Em 2007, eu tinha terminado o mestrado e queria muito trabalhar, não queria continuar na academia. Surgiu em 2008 um edital para trabalhar com os Yanomami, com educação em colégio indígena, o que me deixou super animada. No final me selecionaram para uma ONG chamada CCPY (Comissão Pró-Yanomami). Vim morar em Boa Vista e foi uma mudança radical, porque eu estava às vésperas de prestar o doutorado, mas decidi vir para cá. Duas semanas depois já entrei em área e foi incrível, um divisor de águas na minha vida. Coloco a minha vida antes e depois dos povos Yanomami. Eu já havia trabalhado com povos indígenas. Trabalhei com os Kaingang e Guaranis, no sul do Brasil, oeste de Santa Catarina, mas, de fato, o encontro com os Yanomami foi uma imersão. Pela distância, o norte do Brasil que eu passei a conhecer e a própria imersão na floresta, ficar na comunidade que não falava português e um dos pré-requisitos para o trabalho era aprender falar uma língua (indígena). A partir disso, mudou totalmente os meus planos de vida. Tinha o objetivo de fazer o trabalho durante alguns anos e acabei resolvendo voltar para a academia, porque surgiu o tema do sonho durante esse trabalho e eu achei que seria interessante por ser uma maneira de voltar a morar com eles por um tempo significativo pesquisando um tema que eu queria.
OP - Num vídeo do qual você participou, o xamã Yanomami, Pedrinho, contou um sonho de destruição da floresta e dos perigos para o povo Yanomami. Como você percebe, nos últimos anos, o sofrimento do povo Yanomami, principalmente devido ao garimpo no território indígena?
Hanna Limulja - Essa pergunta é interessante porque tem pouco a ver com o livro que não aborda especificamente esse tema. Porque eu fui para uma região que não tinha garimpo nem casos de malária. Ao mesmo tempo, o tema do garimpo, e eu aproveito a oportunidade do livro, para chamar atenção para a realidade dos Yanomami, para o que eles estão enfrentando agora. Mas a verdade é que a situação piorou muito nos últimos anos graças à própria postura do governo, porque a terra Yanomami sempre foi alvo do Bolsonaro ainda quando ele era deputado.
A terra Yanomami foi homologada em 1992, há 30 anos. A gente tem alguns momentos trágicos como, por exemplo, na década de 70 durante a construção da Perimetral Norte - rodovia que cortava todo o território Yanomami - teve um impacto demográfico muito grande. Depois, quando se descobriu toneladas de ouro nas terras Yanomami no final da década de 80. Entre 1980 e 1990 houve um boom do garimpo devido a uma alta no preço do ouro, e você tinha 40 mil garimpeiros na terra Yanomami, 80 pistas clandestinas de pouso.
Então, acontece a demarcação da terra em 1992, depois de muita pressão internacional. Era o governo do Collor, estava acontecendo a Eco 92, teve muita pressão internacional. Collor era muito preocupado com a imagem do Brasil no Exterior e acabou homologando o decreto de demarcação da terra e a expulsão dos garimpeiros. Em 1993 houve o massacre de Haximu, que eu cito na apresentação do meu livro, que é o primeiro massacre reconhecido pela justiça brasileira. Ou seja, os garimpeiros nunca saíram da terra Yanomami, mas com a demarcação e presença da Polícia Federal, houve uma redução do impacto, porque era uma coisa escandalosa.
"A situação é o pior momento desde a demarcação das terras yanomami. Este é pior momento que o povo yanomami se encontra, porque não existe fiscalização." Hanna, ao falar sobre a atual situação dos Yanomami

O POVO - O que mudou nos últimos anos?
Hanna Limulja - Nos últimos anos, sobretudo depois que Bolsonaro assume (a presidência), e inclusive, ele tem isso como pauta - no governo dele, ele cita nominalmente a terra Yanomami como uma das terras que não deveriam ser (demarcadas) por causa da ideia de que "é muita terra para pouco índio e que na verdade, os índios também querem fazer mineração, garimpo, legalização". O fato é que durante esses quatro anos, ele fragilizou muito as agências de fiscalização. Vira e mexe, a gente vê as agendas paralelas de Bolsonaro recebendo sindicatos e outros garimpeiros no Planalto.
Tudo isso piorou muito uma situação que não era completamente boa, mas não estava tão escancarada. Ele deu uma abertura para que houvesse um aumento significativo do garimpo na terra Yanomami. Eu menciono na apresentação do meu livro o relatório que foi lançado pela (Associação Yanomami) Hutukara em abril, "Yanomami sob ataque: Garimpo na terra indígena yanomami e propostas para combate-lo", que fala sobre a expansão do garimpo na terra Yanomami e devastação (das terras). A situação é o pior momento desde a demarcação das terras Yanomami. Este é pior momento que o povo Yanomami se encontra, porque não existe fiscalização.
Durante a pandemia, houve momento que ninguém entrou em área (indígena), mas o garimpo continuou normal. Agora, eles têm uma estrutura logística e tecnológica que não existia nas décadas de 1980 e 1990, todo um esquema de comunicação e internet e estruturas que permitem que verdadeiras cidades existam em terras yanomami. Isso, obviamente, tem um impacto devastador para a comunidade.
OP - Na abertura do seu livro, você conta que sonhou com o povo Yanomami. Como você faz a conexão entre seus sonhos e o trabalho que você realizou durante o tempo que viveu entre os Yanomami de Pya ú?
Hanna Limulja - Eu sonhava muito quando estava na floresta. Na época, eu conversava com o Davi (o xamã Yanomami Davi Kopenawa, autor de "A queda do Céu") sobre meus sonhos, e ele tinha sempre uma explicação e foi o que me levou a pensar que tinha algo interessante sobre os sonhos que a gente precisava pesquisar. Eu falo no livro que tem algumas partes, algumas ideias que foram sonhadas. Em antropologia, durante o trabalho de campo, a gente normalmente faz um diário de campo, escreve todos os dias, para depois retomar e escrever a etnografia e a gente fez isso no mesmo dia, mas eu procurava escrever no dia seguinte, ou seja, após ter dormido. Porque eu pensava que algumas coisas eu poderia sonhar, alguma conexão, eu usava isso como se fosse um método meu. Nesse processo da escrita da tese, eu estava numa floresta, um contexto muito diferente da minha realidade.
Quando você volta, as imagens ainda estão muito fortes. Tanto a questão do contexto que tem a ver com a construção não apenas do sonho, mas no sono. Os sons da comunidade (indígena) são outros. Primeiro, você nunca está sozinho. Segundo, você tem os sons dos animais da floresta. A primeira vez que fui a cidade depois de um tempo na maloca, eu acordava à noite sem saber onde estava. Primeiro é a sensação de solidão que a gente nunca sente quando está na comunidade, segundo é o silêncio que na cidade é muito diferente da floresta. Quando saí do campo, comecei o processo de escrever, mas é muito difícil, porque você sai do campo, mas o campo não sai de você e eu sonhava algumas coisas da floresta.
OP - No teu livro você fala que os interlocutores indígenas conhecem muito mais os pesquisadores do que o contrário e que as melhores respostas são as que não são feitas. Como você percebeu esse comportamento?
Hanna Limulja - Na minha trajetória eu percorria várias regiões diferentes. E cada região tem algumas comunidades que são essas casas comunais que a gente chama de maloca, onde moram grupos de parentelas e com afinidades e se criam ao redor dos "patas", que são as lideranças. E esse era um lugar especial porque ninguém ia lá, ficava a quatro horas de caminhada. Como eu tinha de ir à escola, decidi ir nesse lugar. Foi muito difícil. O barco não chegava na margem por causa da vegetação, tinha chovido muito, precisava entrar no rio (Toototopi) e, depois, caminhar por quatro horas.
A gente chegou em Pya ú e, de repente, do nada, eu vi uma casa gigantesca no meio da floresta. Foi muito bonita a cena. Eu guardo essa cena porque foi incrível. Ali moravam 150 pessoas. Depois de passar uns dias lá, eu pensei: "se um dia eu voltar para pesquisar, volto para cá". Quando eu voltei, foi para ficar mais tempo, aprender bem a língua. Mas eles sabem exatamente qual é o repertório. São levas de brancos que chegam o tempo todo.
Quando eu cheguei era da CPPY thëri, tinha os Funai thëri, o governo thëri, os missionários thëri (thëri significa funcionário). Eles estão muito dispostos a ensinar qualquer coisa que a gente queira aprender, mas eles fazem isso na medida em eles vão vendo até onde a gente consegue alcançar. Esse material que eu tinha - 100 sonhos em 500 páginas - traduzi com a ajuda de um jovem que tinha pouca noção do português, a gente transcreveu em yanomae e eu só traduzi uma parte do material.
OP - No livro você também explora a forma como os Yanomami lidam com os mitos e os sonhos e como os sonhos modificam os mitos. Como se dá essa relação entre mitos e sonhos para eles ao longo do tempo e como eles preservam a cultura que é transmitida?
Hanna Limulja - Uma das teses principais do livro era que os mitos para os Yanomami são sonhados e chego a essa conclusão porque quando ia perguntar pelos sonhos, eles me falavam sobre os mitos e quando eu perguntava sobre os mitos, eles me falavam de sonhos. Então, eu fui procurar entender qual a relação entre uma coisa e outra. Até que me dei conta de que os mitos são transmitidos pela oralidade, mas não é que eles saem contando as histórias. Eles veem os mitos, os xamãs, por exemplo, quando inalam o yãcoama, eles veem esses mitos acontecendo e sonham com eles à noite. Cada (xamã) um tem seu repertório.
O estudo dos mitos é clássico na antropologia, mas nunca se levantou a relação com os sonhos e com o tempo a gente percebe que os sonhos estão presentes em várias esferas (da vida dos Yanomami). Nunca se deu destaque para isso. Então, começo a perceber que no contexto e na perspectiva Yanomami, o sonho é fundamental no processo não só de memorização do mito ou quando eles sonham à noite, porque eles vivenciam e eles falam isso. Os lugares aonde eles vão, as pessoas que não são xamãs conhecem por causa da experiência dos xamãs. Por exemplo, o mito de origem da noite, que eu coloco no livro, que foi a partir daí que eles começaram a sonhar, (xamã) Luigi quem me conta esse mito, eu tenho várias versões dele contando o mesmo mito e tem variações, porque o mito nunca é mesmo e uma das razões que faz com que ele mude é porque cada xamã sonha o mito de uma forma e vai acrescentando ou tirando coisas. É uma maneira de manter esse conhecimento e transmiti-lo.
Muitas pessoas que não conhecem os indígenas imagina um velho sentado contando histórias, mas não é assim, pelo menos não no caso Yanomami. Eles fazem o yariamu, que são discursos feitos no meio da casa. Mas ali, eles não contam mitos. Eles vão para resolver questões práticas do tipo: "o mato está grade, vamos cortar; as crianças estão chorando e é um choro de fome de carne. Amanhã, os jovens vão caçar". São discursos de organização da comunidade., mas o mito, eles sabem por meio dos xamãs sonhando essas histórias. É por isso que por meio de um sonho meu eu consigo chegar num mito deles que é o mito do retorno dos mortos. Quando eu contei esse sonho para a Fátima, o marido, (xamã ) Ari, disse "a gente tem esse tipo de sonho, já ouvimos essa história", e ele me conta o mito.

"E na perspectiva Yanomami, eles sonham com os outros e, por isso, é possível perceber que tudo tem uma relação desde a morte de uma pessoa até uma guerra. Essa relação com o mundo não diz respeito a mim sozinha, mas diz respeito ao outro, a outros e esses outros são múltiplos." Hanna ao falar sobre os sonhos numa perspectiva Yanomami

OP - A relação do sonho com o outro é algo muito importante na narrativa do seu livro, que aliás, deu origem ao nome da obra, "O desejo dos outros".
Hanna Limulja - Essa é a outra tese do livro, que é um contraponto a pensar o sonho a partir da perspectiva do ego. O sonho como um desejo oculto do eu. A saudade, por exemplo, é um tema interessante sob vários aspectos, um deles porque é muito bonito e é uma coisa que comove muito todo mundo, mas para os Yanomami sentir saudade é uma coisa que dói e até mata se você não resolve, como sentir saudade de uma pessoa que morreu, por exemplo. Eles me falavam que quando a gente sonha com alguém é que esse alguém estava pensando na gente. Percebi que todos os sonhos eram a partir dessa perspectiva. Era um outro que desejava tanto (que aquilo acontecesse) que fazia que com a pessoa acabasse sonhando. E há várias passagens do Davi no (livro) "A Queda do Céu", falando exatamente disso, de que quando ele era criança e jovem, ele sonhava muito com os xapiri pë, que são os espíritos auxiliares, então, eram os espírito que o desejavam.
Na época, ele não sabia o que isso significava, mas depois ele entendeu. Se você encontra uma cobra no caminho da floresta, isso é desejo de um outro, de um xamã, por exemplo. E por mais que os outros desejem isso, não é um destino fadado. Mas é justamente a capacidade de poderem resistir e dizer não. Por isso, o Davi fala que é preciso sonhar a floresta, por quê? Porque a gente só sonha consigo mesmo. E na perspectiva Yanomami, eles sonham com os outros e, por isso, é possível perceber que tudo tem uma relação desde a morte de uma pessoa até uma guerra. Essa relação com o mundo não diz respeito a mim sozinha, mas diz respeito ao outro, a outros e esses outros são múltiplos.
OP - Você fala no seu livro que para os Yanomami a vida é prosa, a morte é poesia. Você pode explicar isso?
Hanna Limulja - Quando uma pessoa (Yanomami) morre, você precisa destruir tudo dela, inclusive o nome da pessoa, tudo o que remete à pessoa precisa ser destruído, porque precisa se criar uma ruptura com os mortos. Nomear uma pessoa é chamá-la e é preciso evitar. A primeira coisa que eles evitam é dar nomes repetidos numa mesma comunidade, porque se uma delas morrer, a que fica precisa trocar o nome, porque se remete diretamente ao morto. E faz o mesmo com as coisas. Quando um "pata" morre e ele foi generoso, ele não terá muitas coisas, porque ele doou as coisas dele quando as pessoas pediam, quando precisavam. Então destrói tudo para destruir a memória. Eles nunca falam diretamente da morte. Se vão falar de uma morte real, eles usam essas expressões que são super poéticas. Eles usam outras expressões, eles dizem "O cesto caiu" para falar de uma mulher que morre. "A ponta da flexa caiu" para dizer que um homem morreu" ou dizem "ele não está" ou "ela não está" ou "ele se perdeu". O sonho também é bonito nesse sentido porque o sonho é único lugar que o morto aparece, e embora seja preciso negar esse encontro, é o único lugar onde se pode encontrar um morto.

OP - É muito interessante que o lugar onde ficam os mortos é sempre dia e eles estão constantemente em festa, com muita fartura. O reahu é a festa que, segundo seu livro, espelha esse lugar, como se fosse um dia mitológico. Como é a experiência de participar dessa festa?
Hanna Limulja - O hutu mosi (lugar onde vem os mortos) é essa projeção espetacular do mundo real. Luigi que era o xamã com quem eu conversava muito, dizia que o destino morte, não que ele seja desejado, ele não é temido. A vida depois de um morto - hoje em dia se pode dizer isso com bastante segurança - é muito melhor do que a vida que os índios vivem aqui. O hutu mosi é essa casa coletiva, ontem tem fartura, onde se está sempre em festa. A festa que eles fazem para os mortos o reahu é um pouco o simulacro da festa que acontece no céu, no primeiro plano. Aqui tem sofrimento, os Yanomami sofrem, aqui não tem tanta fartura, na festa existe uma fartura que é relativa, tem bastante comida, mas em algum momento a comida acaba, vai gente demais que não foi convidada. As pessoas se dão conta que tem uma hora que essa festa precisa terminar, porque a vida precisa continuar. É como se fosse uma relação com o carnaval. São noites muito intensas, você fica acordada o tempo todo, depois tem de ralar macaxeira, tem de pescar. Como você falou é um dia sem fim, como se fosse esse momento mítico quando a noite não existia.
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O POVO - Como é participar do reahu com a preocupação de ser observadora?
Hanna Limulja - As festas eram uns momentos de muita excitação e a gente entra no ritmo. Eu descrevo no livo o momento que a gente está recebendo a festa no reahu e a gente está esperando convidados e aí a caçada coletiva, a preparação da canoa, todo um trabalho. Mas tem os dois lados: quando a comunidade está para receber e tem a composição mais confortável de ser visitante e aí todo o trabalho social de preparar alimentos e a canoa (secar o trono onde se colocar o mingau que é oferecido aos convidados) é do outro. Na perspectiva de quando você é convidado, começa no momento que você sai de casa. Fui a uma comunidade que ficava a um dia de caminhada. A gente dorme no meio da floresta, caça para comer no acampamento e quando chega perto da casa (que vai receber), acampa de novo porque vêm os anfitriões caçadores levar comida pra gente, passa noite e chega no dia seguinte cantando e eles recebem a gente. É cansativo, eu achava que o cansaço era só meu, mas percebi que depois de dez dias ninguém aguenta mais. Mas o fim da festa é o ápice, quando se vai chorar as cinzas. No carnaval, no fim da festa já passou o ápice.
O POVO - Com o que você sonha atualmente?
Hanna Limulja - Eu sonho com eles, eles me falavam que quando eu sonhasse com eles, eu iria saber que eles pensando em mim.
"Meu livro não fala sobre o garimpo. Ele fala dos sonhos e da existência e de seguir resistindo. Os Yanomami estão vivos, ainda que este governo não queira, eles estão vivos." Hanna ao falar sobre o livro que está lançando
OP - Você fala que gostaria que teu livro ajudasse outras pessoas a sonhar também. Quais sonhos gostariam que seus leitores tivessem?
Hanna Limulja - Um pouco essa perspectiva de pensar: "Tá bom, né? de sonhar só com os desejos da gente!". O mundo tem outras formas de pensar e os sonhos para os Yanomami são uma parte de como eles são e vivem. Meu livro não fala sobre o garimpo. Ele fala dos sonhos e da existência e de seguir resistindo. Os Yanomami estão vivos, ainda que este governo não queira, eles estão vivos. Eu queria passar uma mensagem de que o livro possa trazer outros sonhos no sentido de que as pessoas não só vejam a beleza do livro numa contemplação estética ou romântica. Mas que saibam que essas pessoas estão morrendo, a gente precisa sonhar com outras formas, porque nossos sonhos ou a maneira como a gente lida com o mundo está causando essa destruição, porque as coisas estão conectadas. Não só por quem encontra o ouro. Eu acho que este é o maior paradoxo. O que para nossa cultura representa o símbolo do amor, que é uma aliança de ouro, de casamento, é o que mata os Yanomami. Que as pessoas consigam perceber que é preciso tomar atitude em relação ao que está acontecendo. É urgente. E este é um ano de eleições.
O livro, de alguma forma, passa uma mensagem política. Eu penso que é possível conseguir ter resistência a partir de uma perspectiva de que o mundo é habitado por outros seres, outras pessoas e outras formas de sonhar o mundo e que a gente precisa levar isso em consideração para continuar vivendo. Sonho é importante e tem uma linha política. Sonhar com os outros é perceber os outros. Sonhar numa perspectiva Yanomami é pensar que ali habitam outros seres que merecem viver e que a nossa forma de viver e escolheu habitar este mundo está destruindo não só o mundo deles, mas o nosso próprio mundo. Estamos nesse momento suicidada de consumo e devastação que faz com que a gente entre num caminho sem volta. O céu está caindo e caindo na cabeça de todo mundo. Que as pessoas não só digam eu apoio os Yanomami, é preciso fazer com que este governo não prossiga, porque ele é responsável por tudo isso que está acontecendo, ele está perpetuando uma história e legalizando a morte dos Yanomami de forma devastadora.
"Eu não queria escrever algo genial, descobrir uma teoria (antropológica), o que eu queria na verdade era compartilhar um pouco da beleza do que foi pra mim o que eu descobri com os Yanomami." Hanna ao falar sobre escrever o livro para sensibilizar leitores para a causa Yanomami

O POVO - O que representou para você publicar sua tese nesse momento tão dramática da vida dos povos Yanomami?
Hanna Limulja - Eu não queria escrever algo genial, descobrir uma teoria (antropológica), o que eu queria na verdade era compartilhar um pouco da beleza do que foi pra mim o que eu descobri com os Yanomami. Eu queria que outras pessoas pudessem ter acesso a isso. Pensei muito na maneira em como eu escreveria sobre essa experiência. No livro, tentei fazer isso o mais aberto possível para não ser algo para especialista ou para academia. Já quebrou a barreira da academia por virar livro, porque as teses geralmente não viram livro. O fato de ser sobre o sonho é um tema democrático, qualquer um sonha. Quando alguém me perguntava: "o que você pesquisa? eu respondia, eu pesquiso sonho". Qualquer um sonha, tem alguma coisa pra falar sobre o sonho porque tudo mundo sonha, rico, pobre, preto ou branco. Eu acredito que pela via do sonho, ainda que numa perspectiva idealista, as pessoas consigam se sensibilizar com os Yanonami. É uma forma sutil, mas as pessoas passam a conhecer como eles sonham, como vivem a floresta e talvez se sensibilizem. Eu tenho essa esperança.

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