Conciliações em ações de demarcação de terra indígena aumentam, mas há denúncias de invasões e chantagens

O Globo - https://oglobo.globo.com/brasil/meio-ambiente/noticia - 31/08/2022
Conciliações em ações de demarcação de terra indígena aumentam, mas há denúncias de invasões e chantagens
No STF, ministro Gilmar Mendes encerrou conciliação após denúncias de violência na TI Apyterewa, mas Dias Toffoli entendeu que havia "ambiente favorável"

Por Lucas Altino - Rio de Janeiro
01/09/2022 04h30

Questionada por juristas e entidades indígenas, a abertura de conciliações em processos que tratam de demarcação de terras indígenas aumentou no Judiciário e passou a figurar em decisões de ministros do STF. A medida vem gerando receio diante dos exemplos em que as tentativas de acordo foram sucedidas por aumento de invasões, intimidações e desmatamentos. Ainda assim, no final de maio, o ministro Dias Toffoli entendeu haver "ambiente favorável às tratativas de conciliação" em uma ação que tenta anular a homologação da TI Kayabi. A determinação veio seis meses após o ministro Gilmar Mendes encerrar a conciliação, sem êxito e com denúncias de recrudescimento de violência, numa ação que questionava a TI Apyterewa, no Pará.
Esse tipo de decisão causa preocupação entre associações de defesa das terras indígenas, porque há o entendimento de que potenciais invasores possam usar ameaças, ou chantagens com falsas promessas, para conseguirem um acordo. Além disso, juristas explicam que as terras indígenas são indisponíveis, segundo a Constituição, e portanto, não são passíveis de acordos ou conciliações. Mas o receio é que a atuação do STF abra espaço para um novo precedente.
- A Constituição estabelece isso justamente para que os indígenas não possam ser coagidos e pressionados a desistirem de seus direitos. Ao abrir esse tipo de conciliação, o STF passa uma mensagem contrária, ao indicar que um acordo seria possível. Isso abre margem para os indígenas serem pressionados, ameaçados e ludibriados com falsas promessas para aceitarem acordos que visam, na verdade, a redução de terras e a disponibilidade de seus direitos - critica Juliana Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA). - O papel do STF é o de resguardar as minorias, e não deixá-las mais vulneráveis ante relações que já são extremamente violentas e onde eles já são o lado mais massacrado e frágil.
No caso da TI Kayabi, o Mato Grosso afirma que os indígenas não estariam naquela terra antes do que entende ser o marco temporal para a delimitação da área (1988) e o decreto presidencial de 2013 trataria de uma ampliação de terra já demarcada, o que seria proibido por lei. A presença indígena na área, porém, foi apontada por relatórios técnicos da Funai na época da homologação.
Além de defender seu direito à terra, as lideranças indígenas agora se voltam contra a possibilidade de conciliação, que já havia sido tentada anteriormente. No início de junho, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se manifestou sobre o despacho de Toffoli, e afirmou que "a possibilidade de 'conciliações' tem tido o escopo de reacender ânimos que estavam minimamente apaziguados" e que os indígenas podem "ter seus direitos fulminados".
Segundo a associação, "tentativas de intimidação, coação, cooptação de indígenas com falsas promessas e, até mesmo, o patrocínio de um servidor da Funai, para que os indígenas aceitem uma redução da terra indígena homologada, como única 'alternativa' para não 'perderem tudo', vêm se intensificando "desde a abertura da possibilidade de conciliação". A Apib ainda cita o entendimento de inconstitucionalidade da medida e que "os indígenas passam a correr risco de vida e sofrer ameaças para, inclusive, abandonarem o processo judicial".
A denúncia sobre "patrocínio" de um servidor da Funai surgiu quando, após a primeira tentativa de conciliação no caso, em 2018, indígenas terem relatado que um servidor sugerira a busca por acordo porque, se não, eles iriam perder toda a terra. Esse teria sido o estopim de uma divisão entre as lideranças indígenas da região, que, além dos Kayabi, ainda tem a presença dos Munduruku e Apiaká. Em 2019, o presidente da Associação Indígena Kawaip Kayabi chegou a peticionar no processo o pedido por uma nova conciliação.
O então ministro relator Luiz Fux então acionou a Câmara de Conciliação, o órgão administrativo que media tentativas de acordo. No entanto, a decisão, em outra ação de 2020, do ministro Edson Fachin, que suspendeu todos processos sobre demarcação de terra até o final da pandemia, paralisou as tratativas. Essa foi a segunda tentativa de conciliação. Na primeira, em 2018, a Funai, a Advocacia Geral da União (AGU) e o Ministério da Justiça se opuseram ao pedido.
Mas o ministro Dias Toffoli, novo relator do caso, levantou uma terceira tentativa e questionou as posições das partes. A AGU, que nas tentativas anteriores foi taxativa ao afirmar a impossibilidade constitucional para conciliação, dessa vez apenas citou a decisão de Fachin, bem como uma portaria da Funai que restringiu acesso a TIs também em função da pandemia.
No início de agosto, o procurador-geral da República Augusto Aras em sua manifestação destacou a resolução 697/2020, que diz que tentativas de conciliação podem ocorrer a critério do relator em qualquer fase processual. Aras disse que não haveria impedimento para um novo envio do caso à Câmara de Conciliação. No entanto, o PGR sustentou que é necessário aguardar o julgamento final sobre a tese do marco temporal, que não está com data prevista, antes de iniciar as tratativas de conciliação.
No Pará e no Maranhão, denúncias de violência e desmatamento
Outro caso em que entidades indígenas acusam aumento de conflitos e desmatamento após início de conciliação foi no ano passado, na ação em que o município de São Félix do Xingu (PA) questiona a demarcação da TI Apyterewa. Em maio de 2020, o ministro Gilmar Mendes abriu as tentativas de acordo, que foram encerradas em dezembro passado, em meio a denúncias de episódios de violência e tentativas de intimidação contra os indígenas.
No final do ano passado, foi noticiado que caciques já teriam aceitado abrir mão de metade da terra demarcada há 15 anos, e que possui cerca de 3 mil invasores segundo as estimativas. De acordo com os dados do sistema Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o desmatamento aumentou 147% em 2021, em comparação ao ano anterior. Os 850 hectares desmatados ano passado foram o maior registro desde 2013.
Advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rafael Modesto afirma que essas tentativas de conciliação cresceram nos últimos anos.
- Estamos vendo avançar esse desvio do curso natural das coisas, para tentar diminuir os territórios indígenas. Temos muito receio que o STF, através de decisão de relatoria, crie esse precedente e juízes de grau inferior façam o mesmo, é um risco muito grande - explicou Modesto, que ainda destaca que em grande parte dos processos, os indígenas não são nem intimidados a se manifestar.
Modesto cita ainda um outro exemplo, do caso em que indígenas da etnia Xokleng reivindicam a posse de uma área em Santa Catarina. Na ação, o ministro Fachin abriu conciliação, em 2017, mas limitou apenas a acordos sobre indenizações e de formas de saída dos supostos invasores, numa tentativa que terminou sem avanços.
- Fachin deixou muito claro que o debate sobre o direito à terra não era negociável. Mas depois disso, vieram outros casos sem essa limitação que o Fachin havia colocado - afirma Modesto, que destaca que ruralistas e fazendeiros são as partes que normalmente defendem acordo. - Quando se negocia direito territorial indígena você vai contra a Constituição e contra a prova produzida, porque teria que rasgar o laudo antropológico que definiu os limites do território.
Na justiça federal, o Cimi ainda atua em outras ações em que conciliações foram definidas. Em um caso em que o MPF pede que a União finalize a demarcação da terra Avá-Canoeiro, no Tocantins, Modesto descreveu uma cena esdrúxula durante uma audiência, virtual, de conciliação.
- Estavam recortando um mapa, em cima de uma mesa grande, para dizer onde deveria ser a Terra Indígena. E os indígenas sem entender direito, pelo computador. Depois que nós peticionamos, há cerca de dois meses, o juiz encerrou as negociações.
MPF pediu fim de conciliação no Maranhão
O entendimento constitucional contrário à negociação costuma ser seguido pelo Ministério Público Federal, mas o temor é que uma possível proliferação de decisões por conciliação faça com que alguns casos avancem. Em sua resolução 179, de 2017, o CNMP estabeleceu que o MP não pode "fazer concessões que impliquem renúncia aos direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, cingindo-se a negociação à interpretação do direito para o caso concreto", e no último dia 7 de junho, por exemplo, o MPF pediu em liminar que a Justiça Federal de Imperatriz (MA) cancele a conciliação definida na ação que pede a retirada de invasores na TI Krikati.
Segundo os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), informados no pedido de liminar do MPF, 1365 hectares de vegetação dentro da TI foram desmatados desde 2017, quando a justiça decretou a conciliação. Naquele ano, foram registrados 88 hectares desmatados, quantidade que aumentou para 170 em 2018 e 446 hectares em 2019. Por isso, o MPF afirmou que "constatou-se a continuidade das invasões e a tentativa de consolidação da permanência de não indígenas na Terra Indígena Krikati".
Relatório feito pelo Cimi para o processo, nesse ano, mostrou a "retirada de madeira, a presença de tratores dentro da área, o desmatamento de novas áreas para plantação, a abertura de novos pastos, a presença de novos ocupantes, o retorno de ocupantes já indenizados, a edificação de casas novas, a construção de cercas e muros nas regiões por eles ocupadas e a remoção dos marcos de cimento que delimitam a TI".

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Índios:Terras/Demarcação

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