Riscos para as terras indígenas
Após repercussão negativa junto à sociedade e pressão sobre os parlamentares, regime de urgência do PL expirou e perde apoio de grandes mineradoras
Por Gustavo Viana
12/09/2022
Uma grande mobilização, que contou com o engajamento de entidades da sociedade civil e de artistas como Caetano Veloso, Alessandra Negrini e Seu Jorge, impediu o avanço do Projeto de Lei 191/2020 que visa regularizar a mineração em terras indígenas (TIs). Encaminhado pelo poder Executivo ao Congresso Nacional, o texto também valida todos os requerimentos de exploração de minérios que tenham sido solicitados ou protocolados antes da lei.
Caso seja aprovada, a proposta pode causar a perda de 160 mil quilômetros quadrados (km²) de floresta na Amazônia, área maior que a superfície da Inglaterra, segundo estudo da revista científica One Earth. O desmatamento ligado à mineração aumentou 62% na região em 2021 em comparação a 2018. Só no ano passado, foram devastados 125 km², a maior marca desde o início da série histórica do Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). Entre 2015 e 2020, a mineração desmatou 405,36 km² da Amazônia Legal, cerca de 40,5 mil campos de futebol, de acordo com dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) em parceria com a organização Amazon Watch.
Após a repercussão negativa junto à sociedade e o aumento da pressão sobre os parlamentares, as grandes mineradoras, como a Vale e a Anglo American, abandonaram a defesa de PL, cujo prazo para ser votado em regime de urgência expirou. Por meio do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), as empresas se pronunciaram contra a aprovação do texto, considerado prioritário pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), que encara o PL como alternativa para um eventual desabastecimento nacional de minerais como cloreto de potássio, usado na produção de fertilizantes pelo agronegócio. O Brasil é o maior comprador mundial e importa 96,5% do insumo, de países como a Rússia, Bielorrússia e Canadá, segundo o Ministério da Agricultura.
Para o Ibram, que conta com 120 associados, responsáveis por 85% da produção mineral do Brasil, o projeto não é adequado para os fins a que se destina, que seria regulamentar o dispositivo constitucional que prevê a possibilidade de implantação de atividades econômicas em TIs, como geração de energia, produção de óleo, gás e mineração. "Uma vez que a mineração em terras indígenas está inscrita na Constituição Federal, artigos 176 e 231, a sua regulamentação precisa ser amplamente debatida pela sociedade brasileira, especialmente pelos próprios povos indígenas, respeitando seus direitos constitucionais, e pelo Parlamento brasileiro", diz o diretor de sustentabilidade e assuntos regulatórios do Ibram, Julio Cesar Nery Ferreira.
Apesar da desistência das mineradoras, milhares de requerimentos minerários com interferências em terras indígenas seguem ativos. Segundo o InfoAmazônia, são 3.671 requerimentos ilegais, que abrangem uma área requerida de 13,154 milhões de hectares, dos quais 10,539 milhões em terras indígenas e 3,135 milhões em Unidades de Conservação (há unidades de conservação que se sobrepõem a terras indígenas e solicitações de mineração que se sobrepõem a ambas). Já a Agência Nacional de Mineração (ANM) contabiliza 2.149 processos minerários localizados no entorno ou com interferência parcial ou total com terras indígenas até agosto de 2022.
A Vale informa que não possui nenhum direito minerário nem desenvolve quaisquer atividades de pesquisa ou lavra em terra indígena no Brasil. Em 2021, a empresa anunciou a desistência dos seus 104 processos minerários em TI no país, o que inclui requerimentos de pesquisa e lavra. "A empresa entende que a mineração em terras indígenas só poderá ser realizada mediante o Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI) dos próprios indígenas e ancorada em um marco regulatório que contemple a participação e a autonomia desses povos."
Responsável pelo maior complexo minerador do Brasil, na região de Carajás (PA), de onde extrai minério de ferro, manganês, cobre e níquel, a Vale assinou em junho deste ano um acordo com o povo indígena Xikrin do Cateté, que visa encerrar controvérsias de 15 anos e estreitar a parceria entre a empresa e os indígenas. A área da TI Xikrin do Rio Cateté e as seis Unidades de Conservação que a Vale abriga na região formam um maciço de 1,2 milhão de hectares de floresta, o equivalente a nove vezes a cidade de São Paulo. A atividade de mineração, segundo a empresa, ocupa menos de 2% do total da área de conservação.
A mineradora Anglo American informa que nem ela nem suas subsidiárias detêm qualquer direito minerário em TIs no Brasil. A empresa afirma que desistiu de todos os direitos minerários em áreas onde havia sobreposição com TIs, embora vários desses direitos ainda constem no banco de dados da ANM. "A Anglo American continua trabalhando com a ANM para que seu banco de dados seja atualizado para refletir essas desistências", diz a empresa. Por uma questão de princípios, a empresa declarou que se compromete a só explorar TIs com Consentimento Livre Prévio e Informado (FPIC) dessas comunidades. Segundo a Apib, a empresa contava com 65 requerimentos minerários ativos na AMN com sobreposições em 11 TIs, que atingiam seis povos.
As TIs mais afetadas por pedidos para exploração de minérios são a Xikrin do Cateté, no Pará, e Waimiri Atroari, no Amazonas, ambas com 34 requerimentos cada uma; Sawré Muybu, com 21; e Apyterewa, com 13, ambas no Pará, vem logo em seguida. E a etnia mais impactada é a Kayapó, com 73 requerimentos, seguida pelos Waimiri Atroari (34), Munduruku (25), Mura (14) e Parakanã (13), segundo a Apib. "Quando associadas ao desmonte da política ambiental brasileira, tais licenças aprofundam o subdesenvolvimento da região e mantêm a Amazônia aprisionada à lógica colonial do saque, consumindo rios, florestas e predando a possibilidade de desenvolvimento, de outros arranjos produtivos capazes de conviver com a floresta e promover o desenvolvimento regional", avalia o porta-voz da Amazônia do Greenpeace Brasil, Danicley de Aguiar.
Estudo do Instituto Escolhas aponta que 6,2 milhões de hectares em TI ou Unidades de Conservação estão ameaçados pela busca do ouro na Amazônia Legal. Segundo a gerente de portfólio da entidade, Larissa Rodrigues, a busca pelo ouro ilegal na região tem causado impactos graves e representa uma das maiores ameaças que a Amazônia vive atualmente. "Os principais impactos são a invasão dos territórios, carregando muita violência, e a violação dos direitos humanos, o que é grave. Sem contar o desmatamento dessas áreas, a contaminação por mercúrio dos rios, dos peixes e das pessoas que se alimentam deles. É uma emergência de saúde pública." De 2015 a 2020, o Brasil comercializou 229 toneladas de ouro com indícios de irregularidade, o que representa a metade da produção nacional, e praticamente todo esse metal é exportado, segundo o Instituto Escolhas.
Os especialistas apontam que um dos principais fatores para a disseminação do garimpo ilegal na Amazônia é o posicionamento do governo federal em propagar a atividade como um impulsionador do "desenvolvimento sustentável" para a região. "Não é por falta de alerta que a Amazônia vive uma epidemia de garimpo, mas pela emissão de uma licença moral e política que patrocina o garimpo como um suposto vetor de desenvolvimento regional", diz Aguiar. Em fevereiro de 2022, o presidente Bolsonaro assinou um decreto que institui o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala (Pró-Mapa), criado para "estimular o desenvolvimento da mineração artesanal e em pequena escala", com o objetivo de alcançar o "desenvolvimento sustentável regional e nacional".
Desde 2019, o Inpe emitiu alertas para 79 km² em 14 terras indígenas espalhadas em cinco dos nove estados da Amazônia Legal, mais de 500% em relação aos alertas emitidos em 2018. "Ainda que já fossem alvo da atividade garimpeira, de 2019 para cá, as TIs Indígenas da Amazônia testemunharam uma explosão dessa atividade", diz Aguiar. Dessas 14 TIs, três concentram 89% do total de alertas: Kayapó (PA), Munduruku (PA) e Yanomami (RR e AM).
https://valor.globo.com/empresas/noticia/2022/09/12/riscos-para-as-terras-indigenas.ghtml
Mineração em Terras Indígenas
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