Ministério quebraria barreira com sociedade, afirma líder indígena

Valor Econômico - https://valor.globo.com/ - 09/12/2022
Ministério quebraria barreira com sociedade, afirma líder indígena
Almir Suruí propõe diálogo para sanar problemas ambientais e faz defesa da bioeconomia

Naiara Bertão

09/12/2022

Durante mais de 40 minutos, centenas de executivos e conselheiros de empresas pararam para ouvir o líder indígena Almir Narayamoga Suruí, durante o 23o Congresso do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), em novembro. Cacique do povo Paiter Suruí, da Terra Indígena Sete de Setembro, em Cacoal, Rondônia, e nome incomum até então em eventos direcionados ao público empresarial, Suruí destacou os ganhos que vê em manter a floresta em pé.

Dentro da pauta ESG (sigla em inglês para ambiental, social e de governança corporativa), preservar a Amazônia se tornou meta compartilhada por empresas, organizações da sociedade civil, técnicos e pesquisadores, investidores e população. Garantir o direito ao território e segurança da população indígena são pontos intrínsecos a essa frente de trabalho.

Suruí, que aos 17 anos se tornou líder de seu povo, discursou na Conferência da ONU sobre clima (COP) na Dinamarca em 2009 e já recebeu reconhecimento internacional por sua atuação - como o título de pessoa mais criativa em negócios do Brasil pela revista americana "Fast Company" -, é hoje um dos nomes mais atuantes no país para a causa. Pai da jovem ativista Txa Suruí, foi candidato a deputado federal na eleição de 2022 pelo PDT.

Os Suruí produzem café, cacau, banana, castanha, artesanato e peixes. Têm ainda atividades de ecoturismo, além da Universidade Paiter, a primeira universidade indígena do Brasil. Foram pioneiros no mundo em projetos de geração de crédito de carbono em comunidades indígenas.

Nesta entrevista ele conta o que espera do Ministério dos Povos Originários, previsto para ser criado no governo Lula e faz a defesa da bioeconomia como alternativa para a floresta. "É necessário discutir o melhor caminho para solucionar esse problema junto com vários setores", diz.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Como chegou aos palcos de eventos corporativos como o Congresso do IBGC? Qual sua trajetória na defesa da causa indígena?

Almir Suruí: O povo indígena Paiter Suruí tem 53 anos de contato [com não indígenas]. Junto com isso, vieram as pandemias, que quase acabaram com nosso povo. De 5 mil pessoas, chegamos a 300. Hoje, conseguimos recuperar e somos cerca de 2 mil pessoas. Sou filho dos sobreviventes dessas pandemias. Já nasci e cresci com esses desafios. Rondônia é um Estado novo, onde tinha política para explorar florestas através de retirada de madeira. Lembro que de 1992 a 1995 saíram aproximadamente 400 caminhões por dia de madeira da terra Sete de Setembro. Naquele tempo eu, com 17 anos, fui eleito como um dos líderes do povo Paiter Suruí para buscar solução para esse tipo de enfrentamento.

Valor: O senhor tem participado de muitos eventos. Acha interessante para divulgar a causa indígena?

Suruí: Claro, a gente tem quebrado barreiras com isso. Nossa missão também é conscientizar sobre a importância da nossa união por um mundo melhor. Pensar juntos para desenvolver o Brasil. Não tem porque não querer participar onde está sendo discutido o que é melhor para o Brasil.

Valor: Qual a sua expectativa com o novo governo?

Suruí: O governo passado [atual] foi muito difícil, um retrocesso grande. Eu sou suspeito de falar tanto mal desse governo, até porque eu e cacique Raoni entramos com um processo no Tribunal Penal Internacional contra o presidente [Jair] Bolsonaro. O processo continua correndo. [A representação foi feita em janeiro de 2021 por crimes contra a humanidade]. O que eu acredito que faz o governo Lula melhor é o compromisso com a sociedade e com o povo indígena. Espero que Lula tenha esse compromisso, não seja só campanha.

Valor: O que o sr. acha da criação do Ministério dos Povos Originários?

Suruí: Acredito que é muito importante para o Brasil, vai quebrar barreiras entre povos indígenas e sociedade brasileira, porque vai potencializar a participação dos povos indígenas na construção e implementação de políticas públicas. Dará mais espaço para participarmos. Nesse sentido é muito importante que seja criado e decidido o nome do ministro. Mas é importante dizer que o ministro precisa representar todos os povos. Eu só aceitaria o cargo, se me convidarem, se esse fosse o desejo dos povos indígenas. Na minha opinião, não deveria ser uma pasta partidária, mas de representatividade.

Valor: Dentre os nomes levantados para compor a pasta o seu também aparece como potencial candidato. O que você acha que o ministro que assumir precisa ter e qual tem que ser o objetivo da pasta?

Suruí: Primeiramente a pessoa tem que trazer o diálogo. Dentro dos temas críticos que a população indígena passa, a questão ambiental também é algo que preocupa o Brasil. Então, é necessário discutir qual o melhor caminho para solucionar esse problema junto com vários setores. Se a gente está falando do que é melhor para o Brasil, a gente tem que unir essas forças. Agronegócio é uma força, meio ambiente é uma força. Unir para que eles ajudem um ao outro.

Valor: Imagino que os povos indígenas devam ser um grupo bem heterogêneo. Quais as causas em comum?

Suruí: Temos, sim, políticas diferentes. Somos mais de 205 povos indígenas no Brasil. Alguns podem estar avançadíssimos e outros não. Inclusive alguns estão envolvidos com ilegalidade de garimpo e arrendamento da terra. Cada um faz a adequação dentro da sua necessidade. O que falta são políticas públicas que apoiem esse desenvolvimento do território. Estou falando de crédito, assistência técnica, diálogo com empresas privadas.

Valor: Como vocês têm enfrentado as pressões do desmatamento?

Suruí: Começamos a discutir o problema da retirada de madeira ilegal e convenci as outras lideranças que era necessário fazer o diagnóstico do território e que a gente precisava criar estratégias com ajuda de técnicos e parceiros. A partir deste diagnóstico, criamos a estratégia de 50 anos para nosso povo. A gente precisou colocar dois conhecimentos juntos: o dos pesquisadores e o dos indígenas. O diagnóstico estudou passado, presente e futuro e tem 15 programas maiores, entre eles meio ambiente, cultura, governança, educação, saúde, economia, produção sustentável, valorização da floresta em pé etc. Na economia, a gente passou a valorizar a floresta em pé, mostrar que pode ter mais valor do que a derrubada. Escolhemos uma área, que chamamos de zoneamento, para trabalhar a bioeconomia. Foi nos anos 2000, época em que discutimos a criação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (Pngati), assinada pelo presidente Lula.

Valor: Conseguiram seguir o plano estratégico?

Suruí: Sim. No programa do meio ambiente, por exemplo, nós temos um projeto de reflorestamento, que já tem um milhão de mudas, cultivadas ao longo desses anos. A gente até vende, mas a maior parte é para nós mesmos. Temos ainda projetos agroflorestais, que misturam mogno, cerejeira, ipê, castanheira, açaí, e outros. Trabalhamos com 32 espécies das plantas nativas da Amazônia e algumas já trazem retorno econômico, além de trazer o equilíbrio ambiental. A produção de castanha, cacau e café são exemplos. Nós criamos planos de negócios para fortalecer a economia local e trazer qualidade de vida para cada produtor. Esses produtos ajudam as famílias a terem renda. Cada família tem sua própria produção, mas temos uma cooperativa [Cooperativa de Produção e Extrativismo Sustentável da Floresta Indígena Garah Itxa do Povo Paiter Surui] que ajuda na negociação da venda e repassa o valor proporcional a cada uma. O café, por exemplo, a gente vende para a empresa Três Corações.

Valor: Precisam certificar os produtos como proveniente de bioeconomia?

Suruí: Sim. Para conseguir certificação FSC [Forest Stewardship Council, ou conselho de manejo florestal], não podemos ter, por exemplo, trabalho infantil, precisamos monitorar a biodiversidade para avaliar os impactos ao meio ambiente, acompanhar e cuidar de espécies que estão em extinção, etc. Todo ano contratamos uma auditoria para verificar.

Valor: O que foi preciso mudar ao longo dos anos do plano inicial?

Suruí: Hoje a gente tá buscando cada vez mais a qualidade do produto, e não quantidade. Nosso plano de negócio diz que não devemos pensar só na quantidade, mas na qualidade e mostrar que os produtos têm responsabilidade social, ambiental e consciência econômica de que está desenvolvendo a economia local. Também estamos buscando parcerias para levar nossos produtos para mais lugares.

Valor: O que o sr. acha que precisa melhorar em governança?

Suruí: Precisamos melhorar os processos, o diálogo com o mercado e o público externo, avaliar o resultado disso não só financeiramente, mas o que mudou a vida do povo Paiter Suruí. Isso demonstra se estamos no caminho certo ou não.

Valor: E o que falta para levar seus produtos para mais lugares?

Suruí: Precisamos fazer um plano estratégico de marketing, de comunicação para os produtos em si e também conectá-los à nossa história como povo indígena. E para fazer isso precisa de gente capacitada.

Valor: Falando em capacitação, os jovens estão engajados nos projetos?

Suruí: Parte do nosso plano estratégico era colocar muitos jovens Suruís na faculdade, e conseguimos. Mais de 30 jovens têm graduação ou fizeram cursos técnicos. Formados em direito, engenharia ambiental, administração de empresas, biologia, gestão ambiental, enfermagem e pedagogia, por exemplo. Como a maior parte da nossa produção é agroflorestal, buscamos formar os gestores ambientais, também técnicos agrícolas. A maior parte deles voltou à aldeia para nos ajudar.

Valor: O que vocês querem daqui para frente?

Suruí: Sou um líder que gosta de potencializar o jovem para ele ser o dono do seu destino. Isso que a gente precisa, trabalhar com as políticas públicas como base estrutural para que a gente possa mostrar como é possível você desenvolver a terra economicamente, ambientalmente e visando a melhoria de vida de um povo. Também estamos com projeto de ecoturismo, com hospedagem e roteiro de visitação na floresta e imersão na cultura e na nossa produção agroflorestal. Acredito que isso vai gerar emprego e renda mais rápido.

Valor: A principal vocação é mesmo essa agrofloresta ou há outras frentes que estão observando?

Suruí: Agora em 2023 nós vamos atualizar o nosso plano estratégico. Por enquanto o que a gente desenhou 15 anos atrás era isso: desenvolver nosso território em agrofloresta, projeto sustentável, agregando valor etc. A gente vai agora fazer uma atualização da situação e o povo é quem vai dizer o que quer daqui para o futuro. Porém, já temos algumas ideias; a agricultura, pecuária e também a possibilidade de a gente voltar a estruturar um projeto de carbono na Terra Sete de Setembro.

Valor: Vocês fizeram um piloto de geração de crédito de carbono anos atrás que foi inovador em nível global. Por que não deu certo?

Suruí: O projeto, que durou de 2009 a 2012, em si trouxe muitas experiências boas, mas o que faltou foi o governo fazer seu dever de proteger o território indígena para que ele não seja desmatado. Foi o desmatamento no território que parou o projeto Carbono Suruí. A gente não conseguiu mais sequestrar a quantidade de carbono que a pretendia. Nós vamos estruturá-lo de novo e mostrar a importância do projeto para o próprio povo Paiter, para que o povo como um todo tenha responsabilidade sobre ele.

Valor: Como fazer diferente nesta segunda vez?

Suruí: Primeiro tem que discutir governança de consenso. Tendo isso, dá para superar o outro desafio, que é a há do território. Claro que tem pessoas que não aceitam ou não querem o sistema de compensação ambiental e tentam prejudicar todo o sistema. Por isso que quem está envolvido nesse projeto tem que estar realmente comprometido de mostrar como é possível esse tipo de projeto acontecer. Tem que ter confiança, respeito e união para enfrentar os desafios.

Valor: Uma crença que muitos têm é de que as comunidades indígenas deveriam permanecer no formato "original", sem tecnologias ou lucros, o que você acha disso?

Suruí: Nenhuma cultura é algo parado; todas as culturas avançam. Qualquer ser humano quer consumir inovação. Os povos indígenas também querem isso. Não é porque a gente tem celular ou carro ou outras coisas que deixamos de dar valor a nossa cultura.

Valor: Como o setor privado pode contribuir?

Suruí: O setor privado pode estudar se unir aos povos indígenas. Há alguns povos que têm produtos florestais e agricultura sustentável. Ao se unir a eles, as empresas podem valorizar os produtos indígenas, mostrar responsabilidade ambiental, combate às mudanças climáticas e fortalecimento da economia local daquele povo. Para isso acontecer, eu acredito que as empresas privadas têm que dar essa abertura, abrir o diálogo. Vemos que não é tão fácil assim.

https://valor.globo.com/brasil/esg/noticia/2022/12/09/ministerio-quebraria-barreira-com-sociedade-afirma-lider-indigena.ghtml
Amazônia:Manejo e Conservação

Áreas Protegidas Relacionadas

  • TI Sete de Setembro
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.