Grupos de extrema direita tentam "colar" movimento indígena nacional em protestos antidemocráticos

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Grupos de extrema direita tentam "colar" movimento indígena nacional em protestos antidemocráticos
José Acácio Serere Xavante durante protestos bolsonaristas em Brasília.

Por Eduardo Geraque
23 dezembro 2022 at 8:28

Levantamento do Mentira Tem Preço mostra como uma sequência de vídeos constrói a narrativa de que indígenas apoiam atos antidemocráticos e vandalismo em Brasília em uma falsa guerra contra a prisão do cacique Serere.

No interior de Mato Grosso, horas depois da prisão do indígena José Acácio Serere Xavante por envolvimento nos atos antidemocráticos em Brasília na noite do dia 12 de dezembro, grupos de WhatsApp começaram a espalhar um vídeo onde se via uma grande quantidade de picapes e outros veículos estacionados em uma rodovia de terra.

Alguns indígenas passavam por entre os carros. A trilha sonora escolhida para a peça era a música Tropa de Elite, do grupo Tihuana. A legenda do vídeo não deixava dúvidas: "Indígenas Rumo a Brasília em busca do cacique Serere".
José Acácio Serere Xavante fala a seus apoiadores em vídeo gravado dentro da sede da Polícia Federal em Brasília.

As imagens eram reais. A narrativa de apoio aos atos golpistas que se disseminou a partir desse vídeo, não. O que realmente estava acontecendo era uma movimentação de indígenas da etnia Enawenê-nawê para a realização de um ritual -e não uma mobilização para libertar o cacique alinhado com os golpistas.

"Isso não existe. Está errado o que fizeram, de ligar a gente aos protestos. Somos indígenas e não apoiamos os políticos. Ficam usando nosso nome dizendo que queremos tirar políticos, que apoiamos os protestos. Mas nós apoiamos a democracia. Quem ganhou, ganhou e vamos respeitar. Não torcemos para ninguém", afirmou o cacique Asasanikwa, da etnia Enawene-nawe, ao projeto Mentira Tem Preço.

Segundo o líder indígena, "se havia dez índios da etnia em Brasília era muito". E eles estavam por conta própria, representando eles mesmos, e jamais o povo como todo. "Não tem nada disso que estamos indo em busca do Serere", afirma Asasanikwa.
Como fazemos o monitoramento:

O projeto Mentira Tem Preço, realizado desde 2021 pelo InfoAmazonia e pela produtora FALA, monitora e investiga desinformação socioambiental. Nas eleições de 2022, checamos diariamente os discursos no horário eleitoral de todos os candidatos a governador na Amazônia Legal. Também monitoramos, a partir de palavras-chave relacionadas a justiça social e meio ambiente, desinformação sobre a Amazônia nas redes sociais, em grupos públicos de aplicativos de mensagem e em plataformas.

Como no caso da "indiociata", que também se passou no Mato Grosso, mais uma vez as imagens de um ritual indígena foram aproveitadas para dar a impressão de que os indígenas estavam do lado dos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL).

Sobre os atos de vandalismo em Brasília, a Polícia Federal executou a prisão de José Acácio Serere Xavante após um pedido feito pela PGR (Procuradoria Geral da República). A instituição apontou que Serere participou, entre outros atos, do que ocorreu em frente ao hotel onde o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva está hospedado para atuar na fase de transição de governo. As investigações da PF demonstraram ainda que o cacique esteve também envolvido em atos antidemocráticos no Congresso Nacional, no Aeroporto de Brasília, no Park Shopping e na Esplanada dos Ministérios.
A narrativa da falsa mobilização indígena

Desde o dia da prisão do cacique Serere, vários vídeos tentaram associar os atos antidemocráticos em Brasília a uma suposta mobilização dos indígenas para libertá-lo, revela um levantamento inédito das redes sociais do Mentira Tem Preço.

No próprio dia 12 de dezembro, em uma live de três horas, João Salas mostra cenas de depredação na capital que ele sugere ter a ver com "índios na PF". No entanto, no vídeo ele caminha por duas horas e meia até conseguir falar com um indígena, que se identifica como "Derto", do Mato Grosso, e defende o cacique Serere por ser "um patriota".
Protesto em Brasília pedindo a libertação de Serere Xavante, filmado por youtuber bolsonarista.

"Nós não queremos comunismo nunca mais. Cacique tem que respeitar, não pode ser preso. Ele é pessoa do bem, ele é pastor", diz o entrevistado na live, que teve 543 mil visualizações no YouTube.

Francisco Mello mostra imagens do local onde um ônibus foi queimado pelos manifestantes antidemocráticos e também diz que o motivo da suposta revolta dos indígenas é a prisão do cacique.

"Os outros índios entrou [sic] pra briga e estamos nessa situação", diz o vídeo, que foi visto 510 mil vezes e mostra predominantemente pessoas brancas em frente à sede da Polícia Federal gritando "Liberta o Serere".

No dia seguinte, o Dr. Sandro Gonçalves publicou um vídeo no qual um indígena diz, ao lado de outros dois: "nós deixamos a nossa mensagem, deixamos nosso recado e nada foi feito. Agora vamos partir para o embate, tudo ou nada [...] Agora a guerra está declarada!". A publicação teve 467 mil views.

Na sequência, a Jovem Pan diz no dia 14 que um grupo de indígenas pede a soltura do cacique e ameaça agir se isso não acontecer. O apresentador mostra um vídeo no qual outro indígena diz que "nesses 42 dias fizemos a nossa manifestação dentro das quatro linhas" -usando uma expressão bastante frequente nas falas de Jair Bolsonaro.

Mas, no final, ele afirma que "será derramado sangue" se o presidente do país não soltar o cacique. "Se nosso líder não estiver conosco, nós iremos invocar todos os indígenas, iremos invadir, aterrorizar os quatro cantos do país, começando aqui por Brasília", afirma ele.
Serere Xavante com Jair Bolsonaro em fotografia publicada em suas redes sociais.

Os vídeos e as reportagens dos canais de extrema direita sobre o caso mostram muitas pessoas protestando, mas nenhum indício de que se trata, de fato, de indígenas. Não existe nenhum crédito sobre os participantes dos atos golpistas.

O movimento nacional indígena, representado por associações como a APIB e Coiab, é crítico ao governo de Jair Bolsonaro (PL) que, desde a campanha em 2018, afirmava que não iria demarcar nenhuma Terra Indígena em seu governo, o que de fato aconteceu.

No entanto, existe uma relação estreita entre empresários do agronegócio e determinados grupos Xavantes que vivem no interior de Mato Grosso, como mostra uma reportagem do InfoAmazônia em parceria com O Joio e o Trigo.

Um dos projetos polêmicos em curso é o Agro Xavante, iniciativa de fazendeiros do Sindicato Rural de Primavera do Leste em parceria com o governo do Mato Grosso e a Fundação Nacional do Índio (Funai).

Intitulado de "independência indígena", o projeto prevê a exploração agrícola nas terras indígenas e afirma que irá "levar desenvolvimento, segurança alimentar e qualidade de vida" aos Xavante. A escolha pelo uso de urucum e carvão para pintar a pele tem um motivo, relata Hiparidi. "Urucum e carvão eram usados para a guerra. Estamos em guerra com o governo. Essa é a explicação", afirma, referindo-se ao governo de Jair Bolsonaro."
Quem são os Enawenê-nawê

Os Enawenê-nawê, um grupo hoje de 1.500 pessoas, falam uma língua da família Aruák e vivem próximo ao rio Iquê, afluente do Juruena, no noroeste de Mato Grosso. Segundo o Instituto Socioambiental, desde o início dos anos 2000, suas formas de produção e reprodução da vida social encontram-se fortemente ameaçadas.

A construção de várias PCHs (pequenas centrais hidrelétricas) nos arredores da terra indígena Enawenê-Nawê afetou a dinâmica ecológica do meio aquático, comprometendo a realização das cerimônias rituais, que são de suma importância para a vida dos Enawenê-nawê.

Além disso, esses indígenas encontram-se cercados por outras ameaças de invasão e de poluição dos rios e de suas terras, proporcionadas pelas atividades de agropecuária e mineração e pelo cultivo de soja no entorno de seu território.

Essa reportagem faz parte do projeto Mentira Tem Preço - especial de eleições, realizado por InfoAmazonia em parceria com a produtora Fala. A iniciativa é parte do Consórcio de Organizações da Sociedade Civil, Agências de Checagem e de Jornalismo Independente para o Combate à Desinformação Socioambiental. Também integram a iniciativa o Observatório do Clima (Fakebook), O Eco, A Pública, Repórter Brasil e Aos Fatos.

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Índios:Questão Indígena

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