Uma viagem à Aldeia Sagrada do povo Yawanawá, na Floresta Amazônica
'Tudo que o homem branco nos fez de mal, devolvemos em forma de amor', diz o cacique Biraci Brasil, que liderou resgate cultural após domínio de religiosos americanos
William Helal Filho
05/06/2022
TARAUACÁ, Acre. As sete horas na canoa voadeira são necessárias para se compreender a profunda mudança de contexto, entre a movimentada Cruzeiro do Sul e as entranhas da Floresta Amazônica, em Tarauacá, no Acre. O trajeto serpentino do Rio Gregório carrega o visitante num universo com todos os tons de verde e amarelo, enquanto o piloto opera o motor de popa de pescoço esticado, olhando adiante da proa, atento ao correr das águas para evitar os troncos e bancos de areia.
Pode ser preciso parar para trocar a hélice, quebrada. Pode chover e fazer sol, com direito a arco-íris (várias vezes). Pode anoitecer também. O importante é que chegamos à Aldeia Sagrada dos Yawanawá, local onde esse povo indígena vivia até o primeiro contato com seringalistas, nos anos 1940. Local de onde eles saíram após a comunidade ter sido tomada por religiosos americanos que demonizaram e baniram seus ritos e idioma. Mas o local para onde voltaram há dois anos, em um contínuo resgate de suas práticas e saberes ancestrais.
- Meu povo foi levado ao trabalho escravo em troca de novidades trazidas pelos seringalistas. Depois, foi evangelizado por protestantes que diziam que nossa cultura, nossas práticas de cura, eram coisa do demônio. Falavam que iríamos pro Inferno. Mas nem sabíamos o que era o Inferno - conta o cacique Biraci Brasil Yawanawá, que, hoje, recebe grupos de visitantes interessados em conhecer a cultura local e entender como o ser humano pode viver em harmonia com a floresta. - Somos um povo de paz, ligados à família, ao espírito. Todo o mal que o homem branco nos fez, devolvemos agora na forma de amor e afeto.
Mesmo depois de tanto massacre por parte da sociedade ocidental, ainda resiste uma miríade de cosmologias espalhadas pela Amazônia. São nações indígenas com culturas riquíssimas, construídas em conluio com elementos da floresta, que, para nós, ainda são um completo mistério. Algumas dessas comunidades encontram no "etnoturismo" uma fonte sustentável de renda e a chance de ensinar sua visão de mundo à gente da cidade que estiver disposta a se despir da prepotência sabichona característica no curso do "progresso" até aqui.
O 'povo da queixada' e suas práticas de cura
Hoje habitando diferentes comunidades na Terra Indígena do Rio Gregório, os Yawanawá são o "povo da queixada", pertencente ao tronco linguístico pano, do qual também fazem parte os Shawãdawa, os Katukina e outros grupos de uma região dividida entre Acre, Peru e Bolívia. O xamanismo dos Yawanawá gira em torno de rituais de cura que, muitas vezes, envolvem o consumo de ayahuasca. A bebida sagrada, obtida a partir da combinação de diferentes plantas, como o cipó mariri, tem propriedades capazes de alterar emoções e a percepção do mundo. Enquanto a ciência define esses efeitos como alucinações, para os membros da etnia, trata-se de um momento espiritual, de crescimento pessoal e conexão com a floresta.
Durante a vivência na aldeia, os visitantes podem receber no corpo as pinturas típicas, de formas diversas, feitas com urucum ou jenipapo. Também são convidados a experimentar práticas medicinais como banhos de ervas, de argila e técnicas de assopro. E ficam à vontade para assistir ou participar das cerimônias ao redor da ayahuasca, sempre com muita dança e músicas exaltando a ancestralidade e a ligação desse povo com a terra. Tradicionalmente, esses rituais não incluíam instrumentos, mas, de tempos para cá, graças ao intercâmbio com a cultura não indígena, muitas canções são embaladas por violão e outros apetrechos musicais (procure a página do Coletivo Aldeia Nova Esperança no Spotify).
- O primeiro contato com a sociedade branca foi muito negativo. Mas as coisas mudaram. As pessoas que vêm aqui interagem com a cultura, levam para fora, expandem - observa o cacique Yawanawá. - A contribuição financeira dos visitantes ajuda a manter nosso meio de vida. É um apoio que o Estado nunca nos deu.
Foi durante a vivência em uma aldeia dos Yawanawá que o DJ Alok, um dos artistas mais ouvidos nas plataformas de streaming do país, recebeu a inspiração para seu novo disco, no qual todas as faixas têm letras escritas em idiomas indígenas. Ele estava com depressão quando decidiu conhecer o povo amazônico e, durante uma cerimônia com ayahuasca, em 2014, teve a certeza de que "o futuro é ancestral". O disco deve ser lançado nos próximos meses.
A Aldeia Sagrada tem instalações para hóspedes, um alojamento em construção e pontos com sinal de internet Wi-Fi. Mas a agenda de vivências deste ano está lotada, até porque não é sempre que os moradores podem receber grupos grandes de visitantes. É preciso trabalhar, plantar, caçar, cuidar da saúde, do espírito, enfim... tocar a vida.
Um cacique e a luta para resgatar as tradições
Décadas atrás, a realidade local era outra. Com os religiosos instalados nas aldeias, os Yawanawá haviam abandonado seus ritos e o idioma e celebravam cultos evangélicos aos domingos. O próprio Bira, como o cacique é chamado por amigos, foi morar em Rio Branco.
O expurgo dos invasores se deu a partir de 1984, quando da demarcação do Território Indígena do Rio Gregório, homologado em 1991. Mas aquilo era só o começo. Segundo o líder indígena, foi preciso criar atividades para gerar receita e resgatar o senso de comunidade perdido, na então recém-fundada Aldeia Nova Esperança. Bira estava em busca de soluções quando viajou à Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Rio-92, há exatamente 30 anos.
Na conferência, ele se uniu a lideranças de outros povos, firmou contrato para fornecer urucum a uma multinacional de cosméticos e conheceu o produtor cultural Perfeito Fortuna. Criador do Circo Voador e da Fundição Progresso, Fortuna "comprou o barulho" e mergulhou com os Yawanawá em projetos como o Couro Vegetal da Amazônia, voltado para a fabricação de bolsas e sapatos com um material à base de látex e algodão. Desde então, o produtor carioca costura apoios e, todos os anos, visita a aldeia com grupos de amigos, muitos dos quais se engajaram na causa.
O ponto alto da agenda cultural é o Festival Mariri. O encontro ocorria todos os anos na Aldeia Nova Esperança, hoje chefiada por Biraci Junior Yawanawá, filho mais velho do cacique veterano. A última edição, porém, foi realizada na "reinauguração" da Aldeia Sagrada, em outubro de 2019, meses antes da pandemia de Covid-19.
- Cancelamos tudo e passamos a pandemia isolados do resto do mundo. Foi um período difícil, mas nos reconectamos com nossas plantas medicinais. Agora, estamos vacinados e mais fortes do que nunca - diz Bira.
https://oglobo.globo.com/um-so-planeta/noticia/2022/06/uma-viagem-a-aldeia-sagrada-do-povo-yawanawa-na-floresta-amazonica.ghtml
PIB:Acre
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