Indígenas Turiwara são alvos de dois ataques no Pará

Amazônia Real - https://amazoniareal.com.br - 25/09/2022
Tracuateua (PA) - O final de semana foi de violência contra o povo Turiwara, que vive na comunidade Ramal Braço Grande, localizada próxima à Terra Indígena Turé-Mariquita, entre as cidades de Tomé-Açu e Acará, no nordeste do Pará. Na manhã de sábado (24), pistoleiros, dentro de um carro Gol vermelho, atiraram contra dois veículos dos indígenas estacionados no quilômetro 14 da rodovia PA-256. Quatro pessoas ficaram feridas. O motorista não-indígena Clebson Barra Portilho morreu no local do atentado.

Os disparos deixaram feridos os indígenas Adenísio dos Santos Portilho, Clelson Portilho e Antônio Moraes Vieira, que estavam dentro de uma caminhonete branca S10, dirigida por Clebson. No outro veículo estacionado, um Fiat Argo, também foi ferido o motorista não indígena Erismar Souza da Silva. O indígena Clelson levou um tiro na cabeça e é o único dos feridos que permanece internado após passar por cirurgia em um hospital de Belém, distante 100 quilômetros do Vale do Acará.

O segundo ataque contra os Turiwara aconteceu na manhã deste domingo (25). Uma casa cultural da comunidade indígena Braço Grande foi incendiada. Não houve feridos. Os crimes estão sendo investigados pelo Ministério Público Federal, que acionou a Polícia Federal, responsável pela apuração de crimes contra indígenas. Ninguém foi preso pelos crimes até o momento.

Os indígenas feridos da comunidade Ramal Braço Grande reivindicam uma área próxima à Terra Indígena Turé-Mariquita, que é o menor território indígena demarcado no Brasil, com 147 hectares, onde vivem os Tembé.

"Nós fomos baleados por seguranças da BBF, trajando a farda de segurança, num Gol. Nós abominamos essa tal prática de fazer justiça com as próprias mãos. Nós indígenas Turiwara, quilombolas e ribeirinhos", disse Adenísio dos Santos Portilho, conhecido como "Ad", um dos feridos no ataque. Ele levou um tiro na perna e até a tarde deste domingo (25) aguardava para ser operado.

As lideranças Turiwara acusam seguranças da indústria Brasil Bio Fuels (BBF) - maior produtora de óleo de palma da América Latina - como autores dos crimes. A empresa, que disputa uma área sobreposta ao território Turé-Mariquita, nega envolvimento no caso. No entanto, distribuiu nota à imprensa acusando o líder Adenísio Portilho de ser um "criminoso contumaz". Também informou que no interior dos carros dos indígenas a "polícia encontrou grande soma em dinheiro e arma de fogo". A Polícia Civil do Pará não se manifestou sobre essas imagens. (Leia mais no final do texto).

Este foi o segundo atentado sofrido por Adenísio Portilho em três meses. Em julho deste ano, um acampamento em que ele estava com irmãos e primos foi atacado por homens armados e encapuzados, que efetuaram cerca de 50 tiros em direção ao grupo. Uma pessoa ficou ferida.

Lideranças indígenas e quilombolas ouvidas pela Amazônia Real acusaram os seguranças da empresa pelo ataque. O caso foi denunciado à Polícia Civil do Pará, no entanto, segundo Josias dos Santos, porta-voz da Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes de Quilombolas do Alto Acará (Amarqualta), quem acabou sendo criminalizado foi o próprio Adenísio.

"Depois desse ataque não houve nenhum desdobramento da Justiça. Com isso o Ad começou a andar assustado, com medo e a polícia acabou encontrando ele três ou quatro dias depois armado e prendeu o rapaz", conta Josias, uma das lideranças que lutam pelo reconhecimento dos territórios tradicionais nas áreas disputadas pela BBF. Inconformado, Josias explica que "jogaram a culpa pra cima dele, ou seja, o crime dele tá armado foi maior do que todo o ataque sofrido por ele e pela família".

Em abril deste ano, a Amazônia Real noticiou a retaliação violenta sofrida por indígenas e quilombolas que, em manifestação, ocuparam a frente da sede da empresa BBF e atearam fogo em veículos. Segundo testemunhas ouvidas pela reportagem na ocasião, tiros foram disparados pelos seguranças da empresa em direção aos manifestantes. Um quilombola, pertencente à comunidade Nova Betel, chegou a ser espancado e mantido em cárcere privado pelos mesmos seguranças, que o teriam levado de forma irregular até a Seccional de Marituba, na região metropolitana de Belém, a cerca de 200 quilômetros do local onde os protestos ocorreram.

"A gente está sobressaltado, todo mundo nervoso com o que aconteceu hoje [dia 24]. Pra nós, foi gente da empresa [BBF], porque são os únicos que querem a cabeça do índio e do quilombola aqui. A cabeça do 'Ad', os caras dizem que tá valendo 20 mil. Quanto vale a minha?", questiona Edvaldo Turiwara. "Dizem que o indígena protege a Amazônia, mas quem protege nós?", completa.

A violência contra povos indígenas no Brasil aumentou durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), diz o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à Igreja Católica. Foram 282 assassinatos em 2020, e 276 em 2021. Entre os mortos deste ano está Janildo Oliveira Guajajara, que foi assassinado com tiros nas costas no dia 3 de setembro, no município de Amarante do Maranhão (MA). Ele foi o sexto guardião da floresta morto da Terra Indígena (TI) Arariboia.

Ameaças constantes

A Amazônia Real acompanha de perto os conflitos ocorridos na região do Vale do Acará desde o assassinato do líder quilombola Nazildo dos Santos, da comunidade Turé III, em 2018. As terras quilombolas são vizinhas das comunidades indígenas do Turé-Mariquita e da sede da BBF. O fazendeiro José Telmo Zani foi denunciado em dezembro de 2018 pelo Ministério Público do Pará à Justiça por encomendar o crime, mas nunca foi preso e ainda não foi julgado.

Além de Nazildo dos Santos, outros três quilombolas de comunidades associadas à Amarqualta já foram mortos em conflitos territoriais na região. Eles, assim como os indígenas Turiwara, que lutam pelo reconhecimento de suas áreas junto à Funai, e os Tembé Tenetehara, atualmente vivem em conflitos constantes com a BBF.

Segundo o advogado indígena Jorde Tembé, somente este ano "já foram cerca de nove episódios de ameaças e violências físicas e psicológicas praticadas pela gigante do óleo de palma contra a população indígena e quilombola no território em disputa".

Um dia após as manifestações de abril deste ano, os Tembé chegaram a denunciar em suas redes sociais que uma indígena foi abordada por seguranças da BBF, que teriam ameaçado atear fogo em seu corpo se ela fosse pega circulando nas imediações da sede da empresa.

"Há anos a gente vem denunciando os ataques nessa guerra contra a BBF e, hoje, as pessoas que foram baleadas e a que morreu estavam ameaçadas de morte, com preço sobre cada cabeça, assim como eu também sou ameaçado", disse em vídeo Paratê Tembé, importante liderança do povo Tembé Tenetehara.

Paratê é considerado uma das maiores lideranças indígenas da região, e também a mais ameaçada, tendo escapado, segundo afirmou, de diversas emboscadas. "Tudo o que eles mais querem é que eu seja visto como um criminoso, um bandido, por causa da luta que a gente tem aqui, porque queremos que nossos direitos como indígenas sejam respeitados", disse a liderança em entrevista à Amazônia Real.

O que diz a BBF

A indústria BBF fez um comunicado público em sua conta no Facebook - compartilhado maciçamente por seus funcionários na rede social - prometendo processar o indígena Paratê Tembé que, segundo a empresa afirma, "vem tentando associar de forma caluniosa o nome da BBF a esses fatos trágicos ocorridos nesta manhã, objetivando ações de terrorismo e vandalismo contra a empresa e seus funcionários".

Procurada pela reportagem, a empresa disse em nota lamentar o ocorrido e negou qualquer participação dos seus funcionários no ataque. Na mesma nota, classificou Adenísio dos Santos como "criminoso contumaz".

"No veículo alvejado, segundo consta, a polícia encontrou grande soma em dinheiro e arma de fogo. Um dos alvejados é criminoso contumaz e possui diversas rixas com gangues locais e com outras comunidades, sendo recentemente preso com munições de arma de fogo", disse a empresa, que também enviou uma foto por e-mail na qual se vê maços de cédulas de R$ 100,00 e R$ 50,00, além de um revólver calibre 38.

A Amazônia Real questionou a BBF sobre a origem da foto mostrando somas de dinheiro e a arma, mas a empresa não se manifestou.

Sobre o incêndio na casa de cultura da comunidade Ramal Braço Grande, a BBF, por meio de nota enviada à reportagem, informou que "não teve conhecimento expresso e formal do incêndio relatado e se solidariza pelas perdas da comunidade".

Com relação à disputa de território e conflitos nos limites da Terra Indígena Turé-Mariquita, a empresa diz que "reforça que respeita os limites de territórios e atua apenas em suas áreas de posse, atendendo os critérios exigidos no decreto. A BBF exerce a posse pacífica, justa e ininterrupta de suas áreas desde que assumiu, em novembro de 2020, a propriedade que era de responsabilidade da Biopalma (subsidiária da Vale) no Estado do Pará".

"A Companhia esclarece que não existe sobreposição de terras, conforme relato dos representantes INCRA e ITERPA em reunião realizada com a Comissão Agrária, tendo presença do Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, representantes do Judiciário e outros participantes. Por outro lado, já existe área demarcada pelo INCRA aos indígenas da região, intitulada aldeia "Turé Mariquita"". (Leia a íntegra da nota enviada pela indústria neste link).

A reportagem procurou a Polícia Civil do Pará e a Secretaria da Segurança Pública para pedir informações sobre as investigações dos dois ataques contra os indígenas, além das imagens publicadas pela BBF, mas nenhuma autoridade se pronunciou até o momento.

O Ministério Público Federal (MPF) informou que "a instituição vai apurar as circunstâncias em que ocorreu o episódio divulgado nas redes sociais e na imprensa como um ataque de pistoleiros". Em nota, o MPF afirma que "denunciantes atribuem os crimes a pistoleiros que teriam sido contratados por empresa exploradora de dendê envolvida em disputas de terras na região", mas não cita o nome da indústria BBF.

A Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa) informou que a organização está apurando o caso e que pretende se manifestar nos próximos dias.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) anunciou que a organização da Igreja Católica, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Sociedade Paraense de Direitos Humanos e a Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (Malungu) acompanham o caso.

"Vítimas da monocultura"

As aldeias dos povos Turiwara e Tembé, assim como as comunidades quilombolas localizadas no Turé, há anos disputam a área que foi, segundo as lideranças comunitárias locais, invadida pela Biopalma no passado, consumando a monocultura do dendê no território. A BBF, após comprar as ações da Biolpalma, tornou-se a dona das centenas de milhares de pés da palmeira que foram plantados em uma área atravessada, há décadas, por conflitos agrários.

De acordo com relatórios antropológicos, os registros da ocupação de indígenas Turiwara e Tembé na região, que abrange os municípios de Tomé-Açu, Acará e Quatro-Bocas, data do século XVI. Mesmo assim, isso não foi suficiente para garantir a permanência e manutenção destes povos em seus territórios originários. A forte presença de engenhos de cana-de-açúcar e outras atividades nas imediações do Rio Tocantins, que remontam ao período colonial, cuja mão-de-obra era eminentemente negra e escravizada, fez com que também surgissem comunidades remanescentes de quilombos na localidade, as quais também lutam por reconhecimento e pela garantia de suas áreas.

De certo modo, a pressão sofrida pelos indígenas e quilombolas do Turé resume o cenário de violências e expropriações relegadas aos povos tradicionais no Brasil. É o que defende Elielson Silva, doutor em Ciências e Desenvolvimento Socioambiental e pesquisador decolonial sobre monocultura de dendê na América Latina, sem esquecer que a "pistolagem é o método principal utilizado nesses processos".

Analisando o contexto geral onde ocorrem atualmente os conflitos - que não se restringem aos indígenas e quilombolas do Turé, mas também faz vítimas em municípios vizinhos, como é o caso das comunidades quilombolas da Batalha e Balsas, na cidade de Tailândia, que vivem um cenário semelhante de violências acumuladas com outra gigante mundial da produção de dendê e óleo de palma, a Agropalma - Silva afirma que é preciso revisitar o passado.

"Essa fronteira econômica e física onde ocorrem esses conflitos, entre Tomé-Açu e Acará, é marcada historicamente por antagonismos bastante acentuados, desde o período colonial. Essas tensões vão marcar, inclusive, a formação cultural e social desses territórios", afirma o pesquisador.

Ele também afirma que as comunidades que lutam por seus territórios na região são "vítimas da monocultura" e que é preciso considerar "os traços que são do modelo dessas grandes plantações, que se impõe pelo controle repressor da terra, pelo controle do trabalho e de corpos racializados; pela extração de recursos naturais e pelo uso extensivo da terra".

Em contato com a reportagem, Adenisio dos Santos Portilho, baleado na perna, informou que foi operado na noite de domingo (25) e passa bem. A vítima também atualizou o estado de saúde de Clelson Portilho, que permanece na UTI em estado grave com uma bala alojada no crânio.

Esta reportagem foi atualizada em 26 de setembro (segunda-feira), às 12:28h.

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PIB:Sudeste do Pará

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