Manaus (AM) - A construção da ferrovia EF-170, a Ferrogrão, foi condenada à extinção imediata em um tribunal popular e simbólico realizado no dia 4 de março, em Santarém (PA). Representantes dos povos indígenas Munduruku, Kayapó, Panará, Apiaká, Kumaruara, Tupinambá e Xavante, além de quilombolas, moradores de comunidades tradicionais, agricultores familiares, assentados e movimentos sociais da região do Tapajós e do Xingu, julgaram o empreendimento e seus financiadores, as multinacionais do agronegócio Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi, que foram ao banco dos réus por violações de direitos e impactos socioambientais causados nos territórios e nas populações que serão atravessados pela estrada de ferro.
"O tribunal popular é para mostrar para as empresas que nós povos indígenas estamos unidos pelas aldeias, pelas comunidades, pelos rios e pelas florestas. Queremos que todos os rios e a floresta sejam salvos, porque é deles que a gente tira o nosso sustento. Queremos que não seja poluído, por isso que essa união do povo aconteceu. A Ferrogrão pode trazer muita destruição para colocar plantação de soja no lugar, é isso que pode acontecer", disse à Amazônia Real a liderança Mydjere Kayapó Mekrãgnotire, da Terra Indígena (TI) Baú, no Pará.
A mobilização foi promovida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Associação Indígena Pariri, Instituto Kabu, Movimento Tapajós Vivo (MTV), Comissão Pastoral da Terra (CPT), GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental, Fase Amazônia, Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Amazon Watch e Stand Earth.
Apresentada ao governo federal em 2014, na gestão da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), pela Cargill, Dreyfus, Amaggi e Bunge, a proposta da linha férrea pretende ligar por 933 km de trilhos a cidade de Sinop, no norte do Mato Grosso, ao distrito de Miritituba, na margem direita do rio Tapajós, no sudoeste do Pará, em prol do escoamento de grãos. A Ferrogrão é impulsionada também por produtores de soja e milho do Centro-Oeste brasileiro. O objetivo é baratear a exportação dos seus produtos.
O projeto ganhou força no governo do ex-presidente Michel Temer (MDB) e se tornou prioridade no governo de Jair Bolsonaro (PL). Setores do governo Lula (PT) defendem a Ferrogrão e recursos para seus estudos foram assegurados pelo novo Programa de Aceleramento do Crescimento (PAC), publicado em agosto de 2023.
Os trilhos da ferrovia vão passar por dentro de terras indígenas e áreas preservadas e a obra enfrenta oposição das comunidades tradicionais, que alegam não ter sido consultadas a respeito dos impactos socioambientais, entre eles o desmatamento de uma área de quase 50 mil km². O trajeto da via férrea, caso saia do papel, vai atravessar o Parque Nacional do Jamanxim, classificado como unidade de conservação e criado em 2006. A área de quase 900 mil hectares protege a floresta amazônica.
O tribunal popular destacou que, desde o início do processo de idealização da Ferrogrão, as comunidades indígenas e tradicionais afetadas pelo projeto jamais foram consultadas. A alegação é que o governo federal, desde a gestão Temer, realiza audiências apenas em cidades que beneficiam os apoiadores da ferrovia e desrespeita os protocolos de consulta às populações afetadas.
A demanda é que a consulta prévia seja realizada ainda na fase de planejamento. Essa é a primeira etapa do Protocolo de Consulta aos Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs).
"O direito à consulta livre, prévia e informada foi violado durante a concepção do projeto da Ferrogrão, apesar de ser o governo que deve fazer esse trabalho e não a empresa. A empresa faz parte desse processo e eu destacaria que esse foi um dos principais direitos violados", diz o coordenador executivo da Apib e da Coiab, Kleber Karipuna.
A acusação do tribunal destaca que a consulta prévia, livre e informada é uma obrigação do Estado brasileiro, que é signatário da Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), incorporada ao ordenamento interno pelo Decreto no 5.051, de 19 de abril de 2004.
Mydjere Kayapó considera que as empresas e o governo estão passando por cima dos direitos dos povos indígenas do Mato Grosso e do Pará. "Nós temos o nosso protocolo de consulta, que é o direito que nós temos, e é dever da empresa fazer essa consulta. A gente não é contra o desenvolvimento do Brasil, mas o nosso direito está sendo atropelado", declara.
Foram seis horas de julgamento, marcadas pelos testemunhos de representantes dos povos indígenas e comunidades tradicionais sobre os crimes ambientais e violações do direito à consulta livre, prévia e informada, como determina a Convenção 169 da OIT. A sentença foi lida pela líder indígena e ativista socioambiental Alessandra Korap Munduruku.
"Esse tribunal popular determina o cancelamento imediato e definitivo do projeto da Ferrogrão por parte do governo federal e a devida responsabilização das empresas envolvidas".
Os indígenas também fizeram uma manifestação contra a construção da Ferrogrão no porto graneleiro da Cargill, em Santarém (PA). Povos Kayapó, Munduruku e Panará manifestaram-se contra o que chamam de "trilhos de destruição".
Segundo Kleber Karipuna, a ação do tribunal popular tem como objetivo influenciar a decisão pendente do Superior Tribunal Federal (STF) sobre o empreendimento. Em setembro de 2023, o ministro do STF, Alexandre de Moraes, suspendeu por seis meses a ação que julga a constitucionalidade da lei que alterou os limites do parque do Jamanxim para construção da rodovia. O ministro também determinou a realização de estudos ambientais e consulta aos povos impactados pela obra.
"O tribunal tem esse caráter de trazer informações técnicas do nosso lado, produzidas pelos povos indígenas, pelas organizações indígenas, sobre o quão danoso pode ser o impacto dessa ferrovia se ela não seguir critérios sociais e ambientais de preocupação com os povos indígenas. Foi para discutir a possibilidade de trazer elementos tanto técnicos, quanto políticos, para tentar impedir esse grande empreendimento de ser implementado", defende a liderança.
Procurada pela reportagem sobre a decisão simbólica das comunidades tradicionais e povos indígenas, a Cargill limitou-se a dizer que "não participa do consórcio formado para a construção da Ferrogrão". No mesmo dia do julgamento popular, o presidente da Cargill no Brasil, Paulo Sousa, declarou publicamente que "a ferrovia faz todo sentido e vai acontecer", durante um evento promovido pela gestora Galápagos Capital, em São Paulo.
Impactos socioambientais já são sentidos
Durante o julgamento simbólico, o projeto da Ferrogrão foi acusado de violar os direitos da natureza, na Amazônia e no Cerrado, em decorrência do desmatamento necessário para a construção da ferrovia e do favorecimento da expansão da produção de commodities agrícolas na região, afetando parques e unidades de conservação. A agricultura predatória é marcada pelo uso intensivo de agrotóxicos, que garantem a alta produtividade de grãos. O "veneno", diz Mydjere Kayapó, já poluiu os rios e igarapés da TI Baú.
"As plantações de soja já estão coladas na nossa terra, onde eles colocam veneno na soja e, quando chove, jogam esse veneno no igarapé e o igarapé joga no nosso rio, onde as nossas crianças tomam água, tomam banho. O nosso rio ficou poluído, esse é um dos impactos ambientais que afetam os povos indígenas", lamenta o líder indígena.
Também foi pontuado pelas lideranças das comunidades tradicionais e pelos especialistas que os estudos que fundamentam a construção da Ferrogrão são falhos, porque não avaliaram adequadamente os impactos sociais e ambientais sobre as populações e os territórios que serão atravessados pela ferrovia, inclusive povos indígenas em isolamento voluntário.
Além disso, os estudos também ignoram a relação da ferrovia com a expansão da fronteira agrícola e da mineração na região, e não avaliam os efeitos sinérgicos e cumulativos de diversos projetos no mesmo território, a exemplo da BR-163, a estação de transbordo em Matupá, terminais portuários, hidrovias e hidrelétricas existentes e planejadas na bacia do Tapajós.
Segundo estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental (EVTEA), em torno de 16 terras indígenas estão na área de influência do projeto e 104 assentamentos rurais serão afetados pelos impactos sinérgicos e cumulativos da ferrovia com 933 quilômetros de extensão.
Mesmo em fase de projeto, os impactos da Ferrogrão já são sentidos na região. Os moradores das áreas próximas à região da BR-163, onde está prevista a ferrovia, afirmaram durante o tribunal popular que o anúncio da Ferrogrão, com sua inclusão no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) em 2016 e no Plano Nacional de Logística (PNL) em 2020, tem contribuído para o aumento da especulação fundiária, grilagem de terras públicas, desmatamento, queimadas e conflitos fundiários, além de prejudicar a governança territorial da região do Corredor Tapajós-Xingu.
"Tem estudos falhos e que falam que a ferrovia passaria longe, mas não é verdade. Nós que estamos no território sabemos. Não vamos mais aceitar os estudos feitos sem nossa participação, eles têm que ser transparentes", denuncia Mydjere Kayapó.
Kleber Karipuna destaca ainda o aumento da expansão de produção de grãos de monocultura na região, principalmente a soja, caso o projeto seja implantado. A medida pode causar invasões nos territórios indígenas. "A plantação da soja requer uma área gigantesca e isso pode vir a fazer uma pressão nos territórios indígenas, essa possibilidade de expansão dessas áreas que vão invadir territórios".
O aumento populacional nos municípios próximos a terras indígenas também é uma preocupação, reforça Kleber Karipuna, "o que pode causar problemas sociais para as comunidades, como o alto índice de prostitução e saúde precária".
Governo insiste na obra
O tema voltará a ser analisado pelo STF este mês, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) que gerou a suspensão temporária do projeto. No mês passado, a Repórter Brasil revelou que o governo federal se reuniu com lideranças indígenas Kayapó e, após um pedido de desculpas, afirmou que vai insistir pela continuidade do projeto.
"O problema é que a Consulta Prévia, Livre e Informada a populações tradicionais impactadas por grandes obras de infraestrutura tem que ser prévia. O pedido de desculpas deixa meio claro que a decisão da obra está tomada", alegam representantes do Instituto Kabu, organização que representa nove aldeias das Terras Indígenas Menkragnoti e Baú, no sul do Pará.
Na região, os impactos já são sentidos: mais portos em Miritituba afetam os Munduruku e a especulação imobiliária intensa amplia a pressão sobre os limites dos territórios Kayapó.
Em nota enviada à reportagem, o Ministério dos Transportes afirma que trabalha na atualização do projeto da Ferrogrão "em busca de uma solução que seja ambientalmente sustentável e que atenda às necessidades para o escoamento da produção do Brasil Central pelo chamado Arco Norte".
Além de alegar "promover debates amplos", o Ministério dos Transportes também abriu um canal exclusivo para encaminhamento de sugestões ao grupo de trabalho criado para acompanhar os processos e os estudos relacionados ao projeto: gt.ferrograo@transportes.gov.br. "O objetivo da iniciativa é assegurar ampla participação social sobre os estudos debatidos pelo colegiado", diz o órgão.
Questionado pela Amazônia Real, o Ministério dos Povos Indígenas respondeu que a ministra Sônia Guajajara se reuniu com representantes do Ministério dos Transportes e, na ocasião, foi alinhado que, cumprindo a Convenção 169 da OIT, "os povos que vivem nas 16 terras indígenas potencialmente impactadas pelo empreendimento deverão ser consultados, respeitando as especificidades, particularidades e diversidade dos protocolos de consulta de cada povo". Considerando a quantidade de povos e territórios a serem consultados, o MPI garante que esse processo deve influenciar no andamento das obras.
"O que a gente espera do governo é um apoio na luta por um maior envolvimento de consulta desses povos sobre os problemas que o empreendimento pode causar na região. Que se mude o traçado para não impactar e se não houver viabilidade, como eles [governo] vem falando, que criem possíveis mudanças de traçados. Se causar inviabilidade econômica, que o empreendimento então não seja implementado, não seja efetivado e que a gente consiga barrar o Ferrogrão, nesse sentido do respeito aos direitos socioambientais dos povos indígenas", manifesta Kleber Karipuna sobre a posição do governo.
Sobre o processo de escuta às comunidades, o Ministério dos Povos Indígenas afirma que será feito a partir das necessidades e protocolos específicos e tradicionais de cada povo "neste diálogo intercultural com o Estado brasileiro e empresas envolvidas na construção deste empreendimento". Já a consulta prévia, livre e informada será atendida por meio de "procedimentos culturalmente adequados, podendo envolver a realização de audiências públicas e/ou outros processos de consulta pública indicados pelos povos indígenas e comunidades locais".
Em nota divulgada à imprensa, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) declarou estar acompanhando as solicitações dos indígenas levantadas ao longo do tribunal popular.
A liderança Mydjere Kayapó não acredita em um parecer favorável do governo federal aos indígenas na questão da Ferrogrão. "Sabemos que os governos são todos iguais", diz. Mesmo assim, a expectativa é que o governo Lula ouça os gritos dos indígenas contra a linha de ferro. "Espero que eles consultem nós, indígenas, e marquem uma reunião para mostrarmos o problema da Ferrogrão para as nossas vidas", finaliza.
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