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Necropolítica e Povos Indígenas: o desaparecimento da comunidade Akuntsu
Data: 15 de maio de 2024
Gabriele Nascimento (acadêmica do 1o semestre de RI da UNAMA)
Keity Oliveira e Lara Lima (acadêmicas do 7o semestre de RI da UNAMA)
O genocídio dos povos tradicionais no Brasil tem sido uma realidade desde a colonização europeia. Os indígenas foram submetidos à escravidão, perseguições, violências, doenças e até mesmo extermínio ao longo dos séculos (Silva, 2018). Atualmente não é muito diferente: as comunidades indígenas continuam enfrentando diversos desafios, principalmente devido à falta dos seus direitos, o que corrobora para o inevitável desaparecimento de diversas comunidades tradicionais amazônidas, como os Akuntsu.
Em primeiro plano, dentro de uma perspectiva sociológica, Wright Mills (2000) traz o conceito de "imaginação sociológica" como forma de exercitar a consciência para a compreensão de transformações e conflitos da sociedade. Para o autor, esse imaginário trata de perceber como a experiência individual se relaciona com a história e, por consequência, como biografia e história se tornam conectadas dentro de uma comunidade.
Nessa perspectiva, Vasconcellos (2019) discorre que no imaginário sobre a Amazônia, os conflitos são desarticulados para frisar uma visão de um bioma belo, grandioso e intocável e sem um olhar que desnaturalize esses conflitos, sendo eles interpretados como fatos isolados, tragédias pessoais ou exceção à regra.
Em outra perspectiva, embora no mesmo cenário, Mbembe (2016) aponta que dentro do sistema internacional contemporâneo, há diversas estruturas que possuem objetivo de provocar a destruição de determinados grupos, sendo sujeitas ao poder da morte, onde dentro de um Estado, há um poderio de ditar quem poderia viver e quem deveria morrer.
Este poderio seria realizado com base em valores considerados morais e culturais, obstinados ao extermínio da diferença. Diante o pensamento do autor, destaca-se que em sociedades que são configuradas com o sistema neoliberal, estes valores são vistos por meio de hierarquias, códigos normativos e assimetrias que se transformam no cerne de projetos de dominação (Rodrigues e Pinheiro, 2019). Sobre isso, a concepção focaultiana de biopoder antecipa desdobramentos que o necropoder fará sobre ela, no qual Foucault diz que o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera somente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, no biológico (Foucault, 1989).
Eduardo Mei, professor de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da UNESP (Universidade Estadual Paulista), em entrevista para o IHU Unisinos (2020), afirmou que o "o acúmulo do capital e o neoliberalismo favorecem o caráter necropolítico de um país formado sob o impacto da conquista colonial e da escravidão" como o Brasil. Dessa forma, tendo em vista a acumulação desenfreada do capital, oriunda sobretudo do agronegócio em áreas ambientais e de terras indígenas, nas palavras de Mei, o caráter necropolítico seria uma reminiscência "como um cadáver vivo constitutivo do nosso cotidiano" contra os povos tradicionais, os negros, quilombolas e as populações mais pobres.
A demarcação de terras, por exemplo, é uma questão fundamental para garantir a sobrevivência e a preservação da cultura indígena. No entanto, muitas comunidades ainda aguardam pela demarcação de suas terras, o que as tornam vulneráveis à invasão por parte de fazendeiros, grileiros e garimpeiros. A falta de um dos direitos básicos, previsto na Constituição Federal brasileira, demonstra as políticas governamentais vigentes que corroboram para a estruturação do sistema neoliberal e consequentemente, de um arcabouço necropolítico contra a população, conforme dito por OLIVEIRA (2021, p. 104):
"A usurpação de terras tradicionais, as chacinas, os assassinatos e a proliferação de doenças contagiosas não são fenômenos apartados e sem correlação, pois fazem parte de um projeto de genocídio de povos originários que vem sendo colocado em prática desde o período colonial brasileiro."
Em segundo plano, os Akuntsu, também conhecidos como Akunt'su ou Akunsu são um povo indígena de Rondônia, no Brasil, falantes da língua Akuntsú, pertencente à família linguística Tuparí, Tronco Tupí. Suas terras fazem parte da TI Rio Omerê, um pequeno território que também é habitado por um grupo de Kanoê. Na literatura etnográfica, não há praticamente nenhum registro sobre informações a respeito dessa etnia, sobretudo no período anterior ao primeiro contato oficial da Funai com essa população, ocorrido em 1995.
O povo Akuntsu está hoje reduzido a apenas três mulheres, Pugapia, Aiga e Babawru, todas monolíngues, que ainda mantém suas formas de organização social e suas atividades coletivas com alto grau de autonomia em relação ao Estado e a sociedade brasileira (Aragon e Algayer, 2020). Esta definição os encaixa dentro da classificação oficial de Povos de Recente Contato e elas se constituem como um dos menores grupos étnicos do Brasil, sua história marcada pela usurpação de terras e por massacres.
O período histórico de ocupação não-indígena das regiões próximas que viviam os Akuntsu é durante o período da exploração da borracha, na passagem do século XIX para o século XX, quando começou o ciclo da borracha na região do Guaporé, no qual se teve dois momentos distintos. O primeiro ocorreu no final da década de 90, no chamado "boom" da borracha e o segundo, em 1942, motivado pela Segunda Guerra Mundial com o crescente aumento de demandas pela indústria bélica.
Durante a década 70, o desmatamento da área situada entre o alto rio Omerê e o rio Trincheira começou a se intensificar com os projetos de colonização. Em 1972, o Incra, incentivado pelo governo por meio do Projeto Corumbiara, iniciava a distribuição e liberação de lotes, concretizando assim, o PIN - Plano de Integração Nacional. Apesar de receber notificações sobre a presença indígena na região em 1976, o Incra liberou os lotes e o desmatamento começou a ser ainda mais devastador. À medida que mais e mais partes da floresta eram destruídas, grupos indígenas isolados foram forçados a fugirem e buscarem refúgio em ilhas de floresta cada vez menores.
Na década de 1980, os Akuntsu viveram provavelmente o seu último grande conflito com os brancos. Segundo relatórios e provas encontradas pelas frentes da Funai, revelou-se que nas matas da região havia acontecido um massacre, pois foram encontrados restos de utensílios e vestígios de uma aldeia com aproximadamente trinta indivíduos (Mendes, 2005). Dez anos mais tarde, quando o órgão indigenista contatou pela primeira vez os Akuntsu, o relato de um dos membros do grupo, agora composto por apenas sete pessoas, esclareceu que o massacre se deu numa tentativa de pistoleiros de exterminá-los.
O medo se tornou um elemento presente no cotidiano dos Akuntsu que ao longo dos anos foi sendo reduzido e hoje, contam apenas com três mulheres. As mulheres contam com um pequeno pedaço de floresta que foi demarcada pelo governo, mas que está cercada por enormes fazendas de gado e plantações de soja, ocupações essas que substituíram as extensas florestas que existiam em Rondônia e que eram habitadas por indígenas.
Nessa conjectura, retorna-se ao conceito de necropolítica, que se desenvolve por meio das posturas adotadas pelo governo em relação a esses povos, que ocorre desde a colonização feita no país e que durante os últimos anos, foi ainda mais enraizada por meio da exploração/dominação e do ecocídio (crime de destruição em massa ambiental) dentro desses territórios. Sendo assim, a expansão dessas atividades com o aporte do Estado define a conceituação de Mbembe sobre quem deveria viver e quem deveria morrer.
Em suma, a história do povo Akuntsú é marcada por invasões, por opressão e pelo fato de serem obrigados a viver em áreas planejadas por brancos. Na atualidade, para fugir dos planos expansão de um sistema exploratório vigente, os Akuntsú se isolaram. Esse povo amazônico é resultado de um sistema contínuo de exploração e genocídio, que marca a história do passado, e do presente.
Portanto, medidas interventoras estatais são imprescindíveis, não somente para a reparação da dívida histórica aos nossos povos embrionários, como também para garantir que esse cenário ignóbil não se aplique a realidade de outros povos. Por isso, o Estado - principal órgão interventor jurídico do país - deve, por intermédio da aplicação de seus poderes estatais, garantir que as demarcações de terras indígenas sejam respeitadas, ampliar os territórios florestais destinados aos nativos e assegurar que esses povos expressem seus interesses.
Diante do tema exposto, recomendamos o primeiro episódio do documentário "Guerras do Brasil", disponível na plataforma de streaming Netflix. O primeiro episódio da série conta com a participação de dois líderes indígenas: Ailton Krenak e Sonia Guajajara, retrata sobre a invasão, colonização, exploração, evangelização, dizimação e resistência dos povos embrionários do Brasil. Guerra que se iniciou em 1500, com a chegada dos Portugueses, e que reverbera até hoje.
Recomendamos o trabalho do Instituto Socioambiental (ISA), fundado em 1994, é uma instituição não governamental que tem o objetivo de defender bens e direitos sociais, coletivos e difusos, relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos originários. O ISA, elabora programas voltados para as populações indígenas, como Programa de Política e Direito Socioambiental (PPDS), que busca promover políticas públicas e assegurar a implementação de direitos que garantam um meio ambiente ecologicamente equilibrado e condições dignas de vida para populações indígenas e tradicionais.
Site: < https://www.socioambiental.org/ >
Instagram: < https://www.instagram.com/socioambiental?igsh=MWpubHlwd3Jtd2xsbA== >
Facebook: < https://www.facebook.com/institutosocioambiental >
Recomendamos, ainda, o trabalho da maior organização regional brasileira de Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB). Foi fundada por lideranças indígenas em 19 de abril de 1989. A missão da COIAB é defender os direitos dos povos indígenas a terra, saúde, educação, cultura e sustentabilidade; e atuando na defesa dos interesses indígenas a organização já desenvolveu ,por toda Amazônia, mais de 33 projetos.
Site: < https://coiab.org.br/ >
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Por fim, recomendamos o trabalho da APIB, articulação dos povos indígenas do Brasil, fundada em 2005, nasceu com o propósito de fortalecer as alianças indígenas, unificar a luta dos povos indígenas das diferentes regiões do Brasil, defender seus direitos e demandas.
Site: < https://apiboficial.org/?lang=en >
Instagram: < https://www.instagram.com/apiboficial?igsh=Z2Q5Y2Y0dmtkd2Vk >
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REFERÊNCIAS
ARAGON, Carolina; ALGAYER, Altair. A história do contado pelos Akuntsú: ocupação territorial e perdas populacionais. Revista Brasileira de Linguística Antropológica, v. 12, p. 223-234, 2020. Disponível em: < https://periodicos.unb.br/index.php/ling/article/view/29633 > Acesso em: 09 de maio de 2024.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
IHU Unisinos. A necropolítica brasileira e sua origem na guerra colonizadora. Entrevista especial com Eduardo Mei. Publicado em: 18 de junho de 2020. Disponível em: < http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/600046-a-necropolitica-brasileira-e-sua-origem-na-guerra-colonizadora-entrevista-especial-com-eduardo-mei > Acesso em: 09 de maio de 2024.
MBEMBE, Achille. Necropolítica, biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Arte & Ensaios. Rio de Janeiro, v. [S.I], n. 32, p. 122-151, 2016. Disponível em: < https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169 > Acesso em: 09 de maio de 2024.
MENDES, Adelino de Lucena. Povo Akuntsu. Instituto Socioambiental - ISA. Povos Indígenas no Brasil. 2005. Disponível em: < https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Akuntsu > Acesso em: 09 de maio de 2024.
MILLS, C. Wright. The sociological imagination. Oxford University Press, 2000.
RODRIGUES, Hanna Cláudia Freitas; DE JESUS PINHEIRO, Jonas. A necropolítica neoliberal de encontro ao nomadismo: uma corpografia dos povos errantes na Bahia, no contexto do bolsonarismo no Brasil. Revista Extraprensa, v. 13, n. 1, p. 241-261, 2019. Disponível em: < https://www.revistas.usp.br/extraprensa/article/view/163215 > Acesso em: 09 de maio de 2024.
SILVA, Elizângela Cardoso de Araújo. Povos indígenas e o direito à terra na realidade brasileira. SciELO. 2018. Disponível em:< https://www.scielo.br/j/sssoc/a/rX5FhPH8hjdLS5P3536xgxf/#>. Acesso em: Acesso em: 13 de maio de 2024.
OLIVEIRA, M. R. D. Necroterritórios: territorialização e desterritorialização dos povos indígenas como estratégias necropolíticas. Margens, vol. 15, n. 24, pp. 103 - 122, 2021. Disponível em: Acesso em: 13 de maio de 2024.
VASCONCELLOS, Patrícia M. Cabral de. Vozes da exclusão: os assassinatos de defensores de direitos humanos na Amazônia. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, v. 7, n. 2, p. 77-94. 2019. Disponível em: < https://www3.faac.unesp.br/ridh/index.php/ridh/article/view/712 > Acesso em: 09 de maio de 2024.
Carolina Coelho Aragon e Roseline Mezacasa, «Três mulheres, um povo: histórias akuntsú», Etnográfica [Online], 27(3) | 2023, posto online no dia 10 novembro 2023, consultado o 10 maio 2024. URL: http://journals.openedition.org/etnografica/14831; DOI: https://doi.org/10.4000/etnografica.14831
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