Indígenas, governo e organizações da sociedade civil procuram identificar como estão e onde vivem os animais de um dos estados mais desmatados da Amazônia.
Rondônia ocupa o sétimo lugar no ranking de desmatamento nacional e é o quarto Estado com maior emissão bruta de gases de efeito estufa. Na Amazônia Legal, é o terceiro que mais retira a cobertura vegetal, só ficando atrás do Pará e do Mato Grosso. Esses dados, divulgados em 2023 no Relatório Anual do Desmatamento no Brasil (do MapBiomas Alerta), no Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG, do Observatório do Clima) e no TerraBrasilis (do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), confirmam a tendência de mudança da paisagem nesse estado amazônico nas últimas décadas.
Em 1970, início da série histórica do SEEG, Rondônia estava na 26a posição entre os estados, com pouco desmatamento e atividade pecuária em relação ao restante do país. Em 1994, subiu a terceiro lugar, e nos últimos dez anos se manteve entre os 10 maiores emissores de gases de efeito estufa do Brasil.
"Nas décadas de 1970 e 1980, os agricultores que colonizaram o estado vindos principalmente da região Sul sabiam trabalhar com a terra exposta, então houve muito desmatamento. Já havia em nosso território comunidades indígenas, quilombolas e extrativistas que estavam na floresta e tinham outros modelos para extrair riquezas, mas perderam espaço diante da força dos que chegaram e das políticas que direcionaram esta forma de atuar",
conta o biólogo Samuel dos Santos Nienow, Coordenador Regional de Porto Velho no ICMBio (órgão federal responsável pelas unidades de conservação).
Ele explica que em Rondônia há floresta amazônica, cerrado e campos alagáveis, e com isso, fauna de diferentes biomas. Mas mudanças no uso da terra em decorrência do avanço do desmatamento fazem com que animais como anta, onça-pintada e diversas espécies de macacos tenham sua população diminuída, enquanto aquelas que se adaptam a áreas impactadas ou que migraram de outras regiões fiquem mais numerosas, caso do lobo-guará, espécie que já existe por aquelas terras.
"O cachorro-do-mato e o quero-quero, nativos de outros biomas, ocuparam Rondônia conforme a expansão de cidades e a pecuária. Por outro lado, no vale do Guaporé, na divisa com a Bolívia, o cervo-do-pantanal, que vive nos campos alagáveis, está ameaçado por espécies invasoras, como búfalos introduzidos por lá", diz.
Análise da riqueza nos diferentes ecossistemas
Para acompanhar essas mudanças de habitat e saber seu impacto na fauna, seja na quantidade de indivíduos em uma população ou na variedade de espécies encontradas, é preciso fazer levantamento do que existe e um monitoramento contínuo.
Em Rondônia, as primeiras informações sobre a fauna no estado surgiram no início do século 20, durante as expedições do marechal Cândido Rondon pela Amazônia. Mas só nos anos de 1990 os dados foram atualizados, através do Plano Agropecuário e Florestal de Rondonia (Planafloro), de trabalhos científicos e do planejamento das unidades de conservação e Terras Indígenas.
Nas décadas seguintes, o monitoramento da biodiversidade passou a fazer parte do Programa Monitora, iniciativa do governo federal nas unidades de conservação para verificar a efetividade das ações de conservação e subsidiar o manejo e o planejamento, gerando informações e envolvendo as comunidades locais como agentes para realizar o monitoramento.
Em Rondônia, o Monitora está presente em Florestas Nacionais, Reservas Extrativistas, Parques Nacionais e Reservas Biológicas, entre elas a Floresta Nacional (Flona) do Jamari, em que Samuel coordenou o programa até 2022, durante nove anos. Nessa unidade de conservação, aliás, há monitoramento da fauna desde 2014, antes mesmo de o Monitora ser lançado, em 2017.
"Precisamos conhecer o que temos e falar sobre a importância da biodiversidade. O monitoramento pode levar conhecimento para as populações locais, ajudar a identificar as espécies ainda desconhecidas e ser termômetro para verificar se as estratégias de conservação estão sendo eficientes", diz
Monitoramento participativo
A Flona do Jamari, umas unidades monitoradas, fica a duas horas de Porto Velho, capital de Rondônia, em Itapuã do Oeste, onde Zeziel Ferreira de Moura Silva mora. Nascido na região, ele fez parte da equipe que coletou dados da biodiversidade em campo durante oito anos. A cada seis meses, Zeziel percorria as mesmas trilhas na floresta para procurar mamíferos, aves e borboletas e então registrá-los com fotos, no papel ou através de armadilhas fotográficas.
"Eu sou apaixonado pela natureza", diz ele. "Fazendo o monitoramento, passei a conhecer o quanto a natureza é importante e que é essencial cuidar dela. Quem tá mais longe, não pensa assim."
Ter Zeziel e outros moradores vizinhos às unidades de conservação à frente da coleta de dados faz parte do monitoramento participativo previsto no Programa Monitora, o que favorece a logística de mão de obra, valoriza o conhecimento da população, gera renda local e conscientiza os moradores sobre a importância da biodiversidade onde vivem.
"Vai ficar pra vida meu encontro com a onça", lembra Zeziel. "Quando avistei, ela estava a uns 20 metros de distância, mas veio caminhando, chegou a 4 metros e foi embora. Fiquei assustado, mas me senti sortudo.". Se ver onça foi sorte, avistar aves como jacu, mutum e nhambu ou mamíferos como cotia, veado e anta, faziam parte da sua rotina e dos registros.
No Plano de Manejo da Flona do Jamari estão previstas visitação, conservação ambiental, mineração, exploração sustentável da madeira e moradia de populações tradicionais, mas não é raro ser preciso lidar com atividades ilegais, como caça, retirada de madeira ou garimpo. E Zeziel nota como as mudanças nos habitats afetam as espécies: "A borboleta-estaladeira [Hamadryas feronia], por exemplo, é comum em áreas desmatadas. Se a encontramos na mata fechada, quer dizer que ali perto não tem mais floresta".
Automonitoramento da fauna pelos indígenas Paiter-Suruí
Outra frente de monitoramento da biodiversidade em Rondônia é feita em Cacoal, a sete horas de Porto Velho, na divisa com Mato Grosso. Os protagonistas são o povo Paiter-Suruí em seis das 32 aldeias da Terra Indígena Sete de Setembro.
Desde 2009, os moradores registram os animais que são caçados para servir de alimento e como base de artesanato. O trabalho de monitoramento começou quando os indígenas fizeram uma pergunta a Israel Vale, biólogo que atua com os Paiter-Suruí desde 2004: "Se o nosso povo aumentar, vamos ter caça suficiente para todos?".
Para responder à questão, Israel, que é coordenador de monitoramento ambiental e territorial da Associação Kanindé, construiu em parceria com a comunidade formas de os próprios indígenas acompanharem a variedade e volume da caça ao longo dos anos.
A análise dos resultados gerou diversos aprendizados, tanto para os pesquisadores quanto para os indígenas. Israel achava, por exemplo, que a invasão das queixadas nas roças fosse um problema: "Os indígenas me explicaram que é proposital, que faz parte de suas estratégias de manejo. Preparam parte de seus cultivos para consumo próprio e a outra parte para atrair esses porcos do mato e facilitar a caça".
Já os Paiter-Suruí notaram que tem sido mais difícil encontrar macacos, alguns de seus animais preferidos para alimentação, por causa do roubo de madeira em suas terras, devastação para criação de gado e consequente alteração do habitat (os primatas, aliás, foram assunto do guia de identificação das espécies elaborado por um biólogo Paiter-Suruí em seu mestrado).
Com isso, conta Israel, passaram a dialogar com madeireiras ilegais e também procuraram combatê-las. "Quando diminui o volume de madeiras roubadas nas Terras Indígenas, mais animais estão presentes e espécies mais raras são avistadas. Os moradores notam diferença no dia a dia: se antes andavam 10 quilômetros para encontrar caça, agora caminham de 4 a 6 quilômetros", diz.
A cada nova análise de dados, mais perguntas e discussões aparecem para apoiar a gestão do território indígena, buscando a qualidade de vida do povo e a conservação das espécies. "Estamos curiosos para observar os dados da caça no período da grande seca que atingiu a Amazônia no fim de 2023. Vamos ver se, e como, os índices de chuva e de temperatura afetaram a atividade", diz Israel.
Monitoramento em áreas de restauração
Além das unidades de conservação e da Terra Indígena, as áreas de restauração florestal em propriedades privadas do estado também têm sido alvo de monitoramento da biodiversidade, já que 39% do bioma, segundo o MapBiomas, é ocupado pela pecuária.
Paulo Henrique Bonavigo é coordenador do programa Natureza e Comunidades da Ecoporé, instituição que realiza esse monitoramento nas propriedades privadas. "Há fragmentos de mata cada vez menores e poucos corredores interligando as áreas. Com isso, a perda da biodiversidade é grande, porque há animais que precisam de grandes áreas para alimentação e para viver. É essencial saber se a restauração de Áreas de Proteção Permanente, as APP [como beiras de rio e nascentes] e de Reservas Legais está sendo benéfica para todo o ecossistema, com o retorno da fauna aos ambientes", ele conta.
Paulo Henrique diz que já existem primatas em áreas restauradas há cinco anos e jaguatiricas em um ambiente que era pasto há 10 anos e onde hoje crescem árvores com até 10 metros de altura: "Esses animais estão usando os ambientes para viver ou para se deslocar, o que é um resultado muito interessante". E complementa: "Existem muitas lacunas sobre o conhecimento da fauna em toda a Amazônia. Fazer o monitoramento das espécies conhecidas precisa acontecer em paralelo com o levantamento do que existe para termos informações cada vez mais confiáveis e gerar políticas públicas e iniciativas de conservação."
*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Beatriz Santomauro
https://portalamazonia.com/meio-ambiente/esforco-coletivo-monitora-fauna-de-rondonia/
PIB:Rondônia
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