'Nossas crianças colocam na cabeça que a qualquer momento podem morrer de sede', conta líder indígena
Esta reportagem faz parte de uma série de histórias pessoais de sobreviventes de desastres climáticos no Brasil
27/07/2024
Neste mês, o Brasil registrou 13.489 focos de incêndio na Amazônia no primeiro semestre, o pior número em duas décadas e um aumento de 61% em comparação com o ano passado, segundo dados de satélite compilados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Nas imagens deste cenário de devastação, com frequência figura o sofrimento das vidas vegetais e animais ceifadas. As histórias humanas de dor em meio ao fogo raramente vêm à luz. O mesmo acontece com outros desastres que guardam relação com as mudanças climáticas. Quando se fala em aquecimento global, por exemplo, é imediata a associação com ursos e calotas polares, nem sempre com as pessoas que sofrem com secas, inundações ou ondas de calor em seus cotidianos.
Embora os incêndios na Amazônia e outros fenômenos citados não tenham apenas como causa as mudanças no clima, este é um fator que perpassa ou agrava muitos problemas enfrentados por brasileiros em várias regiões. Neste ano, a tragédia provocada pelas chuvas no Sul do Brasil intensificou o debate. Esta série de reportagens conta a história de sete vítimas de desastres climáticos no país. São "sobreviventes" num sentido lato: podem ter efetivamente sobrevivido a uma catástrofe ou terem tido suas vidas afetadas de alguma forma.
Os depoimentos foram colhidos por estudantes de jornalismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em parceria com o Climate Disaster Project, uma redação internacional de ensino, com sede no Canadá. Todas as histórias podem ser lidas aqui. Segue a terceira delas abaixo:
Seca na Terra Indígena Xakriabá, 2013-2024
"Nossas crianças colocam na cabeça que a qualquer momento podem morrer de sede"
José Fiuza Xakriabá, conforme contado a Alexandre Caetano
São João das Missões, Minas Gerais, Brasil
Quando o agricultor José Fiuza Xakriabá nasceu, em 1950, as leis de proteção aos territórios indígenas no Brasil eram frágeis. A Terra Indígena Xakriabá, que hoje abrange 54 mil hectares no norte de Minas Gerais, ainda não havia sido regularizada e era cobiçada por grileiros. Ataques e invasões eram frequentes. Assim, cedo Fiuza entendeu o que era a sina indígena de que seu pai tanto falava: ter de lutar pelo direito à própria existência.
Apesar das dificuldades, Fiuza lembra-se da juventude como uma fase de modesta fartura, durante a qual os Xakriabá produziam tudo aquilo de que precisavam. Com os mais velhos, ele aprendeu a viver em harmonia com os ciclos da terra. Aprendeu também a tratar males do corpo - e do espírito - com folhas, raízes, frutos ou com o que mais aquele pedaço do sertão mineiro oferecesse. Hoje, aos 73 anos, Fiuza é uma importante liderança Xakriabá.
Décadas atrás, o território Xakriabá era banhado por uma complexa malha de rios. Agora, porém, os filhos e netos de Fiuza se deparam com outra realidade. Esgotada a maior parte das antigas nascentes, o único riacho que ainda corre nos arredores é o Itacarambi - um acanhado curso de água barrenta no qual as crianças mergulham para aliviar o calor.
* * *
Nunca desisti da minha terra, que é o mundo para mim, essa onde eu nasci e me criei. Meu pai é daqui, minha mãe é daqui. A primeira casa de telha em que nós moramos está aqui do meu lado. Antes, nós morávamos em casas de palha, capim-sapé, casca de pau-d'alho, essas madeiras. Sempre foi assim.
Até os anos 1960, chovia muito. Era um tempo bom. Nós comíamos mais. Era carne de caça do mato, peixe. Tinha bastante rio. Mas os rios estão secando todos de lá para cá. Se eu for contar as nascentes que já secaram aqui, talvez não dê conta.
Nossa terra não é esse espinhaço em que nós estamos aqui, não. Fomos encurralados. Os nossos anciões tinham as margens do Rio São Francisco para passear, e a entrada daqui era ali no Remanso e Fabião, onde criaram o Jacaré. Uns falam Jacaré, outros Gandu, mas hoje é Itacarambi.
Só em 1979, tivemos a demarcação desse pedacinho de terra aqui. Você não via esse mato bonito que está hoje, não. Aqui só tinha pasto, porque só tinha fazendeiro. O povo nosso, na época, era de umas 3 mil pessoas. Hoje nós temos mais de 12 mil.
Até hoje, a gente vê aqui nos arredores, o povo não índio não acredita que essa terra é nossa. Eles têm a terra deles lá escriturada, e nós respeitamos. Mas não podemos entrar lá para pegar uma folha de árvore sequer.
Estamos numa estiagem de mais de dez anos. É muito pouca chuva. Parece que, de ano em ano, ela está diminuindo. O pedacinho de terra que nós ganhamos já não está dando mais para a sobrevivência. Hoje a gente tem que trabalhar mais na roça, porque muitas vezes nem dá nada. Às vezes alguém acerta num plantio e consegue alguma coisinha, mas nós temos sofrido. Esse ano mesmo eu já plantei roça, mas não tem mais nada. Temos que esperar chover para plantar de novo, criar uma galinha, criar um porquinho.
É verdade que hoje a gente pode comprar as coisas todas prontas, mas são umas coisas doentes. O café é doente, o açúcar é doente, o arroz, o feijão, tudo que nós consumimos hoje é doente. Até poucos anos atrás, só conhecíamos o veneno no plantio lá de fora. Mas hoje já estamos sendo obrigados nós mesmos a usar em algumas coisas, porque tudo dificultou muito.
Esse tempo assim, muito quente e seco, não deixa de nos trazer mil e um problemas na saúde. A gente vai nos gerais, onde pega a medicina, e vê que as árvores mais velhas estão morrendo: os pequizeiros, as favelas, os paus-terras, os jatobás, as sucupiras.
Quando um índio assumiu o município de São João das Missões, isso nos ajudou muito. Construíram cisterna, barragem. Mas não foi ainda o suficiente, não. A barragem que a gente tem aí está com a água bem lá embaixo. Estamos perfurando tudo para encontrar água. E temos falado para os nossos jovens do risco que é estarmos perfurando a terra e não encontrando mais água.
Tem tido racionamento porque água que a gente possa consumir é muito pouca. Tem dia que a escola fecha porque as crianças não têm água para beber. Tem vezes que as mulheres têm que descer lá para o rio Itacarambi para lavar uma roupa, para tomar um banho. É pouquinha água, mas tem. As nascentes lá da cabeceira da reserva, Pindaíba, Pedrinha, Lagoinha, essas secaram. Só tem o rio seco.
Até o Chico está morrendo também, mas a culpa não é dos Xakriabá. A culpa é dos grandes empresários, que só pensam em acabar com a terra, em acabar com as matas, pensando que a terra vai sobreviver sem. Mas não vai sobreviver, não. A terra está morrendo porque o próprio homem está matando.
O sonho nosso era ter de volta pelo menos um pedacinho do nosso rio, o São Francisco, para tentar trazer a água de lá para alguma serra alta daqui, para pelo menos uma parte da reserva. Nossas crianças colocam na cabeça que a qualquer momento podem morrer de sede. Às vezes, quando não acham o que comer, não acham o que beber, muitos jovens pensam em se suicidar. Eu acho que, com o rio, eles iriam pensar assim: "Ah, nós estamos passando sede aqui, mas nós vamos descer para a beirada do São Francisco. Lá tem água e tem peixe."
A esperança nossa é que Tupã nunca morreu e não vai morrer nunca. E que ele ainda pode melhorar o tempo. Mas é preciso o homem fazer a parte dele, deixar de tanto desmatamento, deixar de guerra, de matar os inocentes, porque no Brasil os que mais morrem são negros e índios, porque são inocentes.
O meu pai falava assim: "Nós só paramos de brigar ou lutar pelo que é nosso quando morremos". A herança de índio é luta, e nós não vamos parar de lutar por aquilo que é nosso. Nós precisamos viver.
Esta reportagem faz parte de uma série de histórias pessoais de sobreviventes de desastres climáticos no Brasil, contadas a estudantes de jornalismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em parceria com o Climate Disaster Project, uma redação internacional de ensino, com sede no Canadá.
https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/07/27/nossas-criancas-colocam-na-cabeca-que-a-qualquer-momento-podem-morrer-de-sede-conta-lider-indigena.ghtml
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