"Morreremos aqui": Justiça autoriza reintegração de posse contra indígenas e aumenta tensão no Oeste do PR

Brasil de Fato - brasildefatopr.com.br - 20/07/2024
Até a sexta-feira (19) à noite, sete territórios haviam sido retomados e um ataque armado foi registrado

O juiz federal João Paulo Nery dos Passos Martins, de Umuarama, autorizou, na sexta-feira (19), a reintegração de posse contra as retomadas e ampliações indígenas na Terra Indígena Guasu Guavirá, no Oeste do Paraná, aumentando a tensão e os conflitos na região. Pelo menos um ataque armado foi registrado desde então e um adulto e duas crianças, de 8 e 10 anos, estão desaparecidos.

Apesar da decisão, as lideranças indígenas dizem que irão resistir. "Se precisar, morreremos aqui", afirmou o cacique Isaías Benites, que está na retomada Arakoé, dentro da Fazenda Brilhante, em Terra Roxa.

A decisão do juiz atende ações judiciais apresentadas por fazendeiros dos municípios de Guaíra e Terra Roxa, onde ocorreram sete retomadas indígenas. A reintegração, no entanto, é para quatro dessas novas tekohas (aldeias): Y'Hovy, Arakoé, Ara Pot e Yvyju Avary.

O juiz ainda proibiu que a Usina Hidrelétrica de Itaipu negocie com os proprietários das terras ocupadas a compra dos territórios reivindicados pelos indígenas. Hoje, a Itaipu é alvo da Ação Cível Originária (ACO) 3555, ainda em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), na qual se busca uma reparação histórica com os Avá-Guaranis do Oeste do Paraná por ela ter inundado seus territórios, quando houve a construção do lago da usina.

O prazo para que os indígenas deixem as áreas é de 10 dias, a contar de sexta-feira. Apesar disso, a decisão motivou ruralistas a aumentarem o nível de violência contra essas comunidades, que já contabilizavam dois indígenas atropelados, além de ameaças com arma de fogo.

Segundo a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), na tarde da própria sexta-feira, pouco depois da emissão do pedido de reintegração de posse, ruralistas atacaram com armas de fogo a tekoha Tata Rendy, em Terra Roxa, deixando um indígena ferido, que não foi mais localizado. Além dele, outras duas crianças, de 8 e 10 anos, desapareceram em meio ao conflito.

A área, no entanto, não é objeto do mandado do juiz.

Em um vídeo gravado na língua guarani e traduzido para a reportagem do Brasil de Fato Paraná, o cacique da tekoha disse que havia pouco efetivo da Força Nacional no momento do ataque - segundo o Ministério da Justiça, o efetivo seria ampliado a partir da última terça-feira (16).

"Os parentes estavam vindo para a retomada e foram atacados por fazendeiros armados, que atiraram e perseguiam de caminhonete", contou.

A liderança não sabe o que aconteceu após isso, já que os indígenas que se somariam à retomada retornaram e não seguiram adiante.

Até a finalização desta reportagem, familiares ainda buscavam notícias dos desaparecidos.

Da comunidade Y'Hovi, em Guaíra, e que é alvo do pedido de reintegração de posse, Ilson Soares afirmou que irão seguir as orientações das lideranças.

"A gente está conversando com as comunidades porque ainda tem um prazo, mas sabemos que os fazendeiros são muito agressivos e existe a possibilidade de sermos atacados por eles. (...) A gente continua na expectativa, estamos conversando (...) e as lideranças afirmam que vão permanecer no lugar que estão. Que é área de ampliação ou de retomada. E a decisão é essa: permanecer e resistir", afirmou Ilson.

Em nota, a CGY alerta para o risco de "graves violações de direitos humanos".

"A decisão do juízo nas ações possessórias eleva a tensão na região, expondo as comunidades Avá Guarani a risco de novos ataques de particulares e expulsões violentas por forças policiais, e tem grande potencial de agravar o conflito", afirma, em trecho, apelando para que as autoridades intervenham.

Contexto

Todas essas áreas começaram a ser ocupadas de forma escalonada a partir do dia 5 de julho. A motivação veio da necessidade de ampliação de território onde os indígenas vivem, devido ao aumento das famílias, e porque as fazendas em questão já foram identificadas como integrantes da Terra Indígena Guasu Guavirá, que cruza os municípios de Guaíra, Terra Roxa e Altônia.

O Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) que mapeou a área indígena foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) em 15 de outubro de 2018.

De acordo com ele, 165 imóveis não indígenas estão dentro dessa grande área chamada Guasu Guavirá. A Fazenda Brilhante, em Terra Roxa, por exemplo, é uma delas.

Mas apesar do reconhecimento por estudo antropológico (o RCID), a Lei 14.701/2023, conhecida como Marco Temporal, impede que esses territórios sejam reivindicados e demarcados.

Assim, de forma autônoma, os indígenas iniciaram processos de retomada.

Em uma carta com a data do dia 15 de julho, as lideranças apresentam seus motivos de, neste momento, resistir e avançar sobre os territórios que já foram reconhecidos pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), porém não demarcados devido ao Marco Temporal.

"Desde que a nossa Terra Indígena foi identificada e delimitada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas, entendemos que estamos ocupando e vivendo dentro dos limites de um território já reconhecido pelo Estado Brasileiro como uma Terra Indígena de ocupação tradicional. Com a publicação da identificação e delimitação do nosso território ancestral, sentimos que temos a liberdade de viver dentro dele de acordo com o nosso ñande reko, os nossos costumes tradicionais. E um dos nossos costumes é a retomada de novos espaços em busca do nosso bem viver, mas sempre dentro da delimitação, o que não deve ser considerado uma invasão", dizem em trecho.

E concluem:

"Se os fazendeiros estão alegando que estão fazendo valer na prática a tese do Marco Temporal, que ainda não foi devidamente legalizada pela Presidência da República, e por isso se acham no direito de cometer violências no campo, nós faremos valer a identificação e delimitação do nosso território Tekoha Guasu Guavirá, porque assim está garantido na Constituição Federal", diz trecho.

A reportagem fez contato com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Ministério Público Federal (MPF), Itaipu e Ministério da Justiça, mas não foi respondida até o fechamento desta reportagem. Espaço segue aberto para manifestação.

Edição: Lucas Botelho


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