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Queimadas: garimpo, mineradoras e latifúndios cercaram TIs no Pará com incêndios
por Ana Nascimento
10 de outubro de 2024
À medida que o fogo avança pelas bordas da Floresta Amazônica, os pássaros, inquietos, parecem anunciar um desastre iminente. Entre agosto e setembro de 2024, a Terra Indígena Kayapó se transformou em um campo de cinzas. No horizonte, uma nuvem espessa encobre as copas das árvores e ofusca o sol, tornando o dia indistinguível da noite. Enquanto a fumaça densa se espalha, comunidades que vivem há gerações sob a sombra dessas árvores veem suas vidas e territórios ameaçados por um inimigo silencioso.
Corredor de fumaça cobriu toda a extensão de território brasileiro no período de agosto a setembro. Foto: NASA FIRMS.
Os incêndios que devastam a floresta não são resultado de acidentes fortuitos ou de meras mudanças climáticas. Imagens de satélite analisadas por AND revelam uma coreografia macabra: os focos de incêndio surgem estrategicamente nos limites de grandes latifúndios, formando um cerco que, lentamente, comprime as Terras Indígenas como uma armadilha. Para os povos indígenas cada labareda é um aviso, um sinal de que suas terras estão sendo invadidas.
O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelou um cenário alarmante: em agosto de 2024, foram registrados 68.635 focos de incêndio, o maior número desde 2010. De janeiro a setembro, o Brasil já acumulou 184.363 focos, com 83,5% deles concentrados na Amazônia e no Cerrado. Na TI Kayapó, mais de 570 mil hectares foram consumidos por chamas, o pior índice registrado desde o início do monitoramento do Greenpeace em 2012. Esse ataque deliberado é mais um capítulo de um processo de grilagem que se arrasta há décadas, impulsionado por latifundiários, mineradoras estrangeiras e garimpeiros ilegais, que rasgam a floresta com a mesma voracidade que desenharam as primeiras estradas clandestinas dentro dos territórios indígenas.
Esse ataque deliberado é uma continuação de um processo de grilagem de terra que se arrasta há décadas, quando latifundiários, mineradoras estrangeiras e garimpeiros ilegais abriram os primeiros acessos nos territórios indígenas e áreas de preservação do meio natural. Hoje, o garimpo ilegal não é mais apenas uma promessa de riqueza, que produziu a desgraça de Serra Pelada (PA); trata-se de uma forma da destruição coordenada que envolve gado, commodities e ouro.
Os registros de incêndio no interior do Pará revelam um padrão alarmante de destruição coordenada. Ao traçar o avanço das chamas, é possível perceber que os focos surgem primeiro nas fronteiras dos latifúndios, avançando em direção às áreas de proteção e ao coração das TIs como se seguissem uma ordem premeditada - até chegarem nas bordas das zonas de garimpo. A destruição se alastra por corredores florestais que conectam as aldeias Kayapó e Munduruku, cercando-as e isolando-as. Na TI Baú, a situação é ainda mais desesperadora: o fogo avança como lâminas cortando o território, deixando um rastro de devastação e desespero.
A culpa é de quem?
Demonstração de como os incêndio são feitos em limites entre latifúndios e Terra Indígena. Foto: Sentinel Hub.
Diante desse cenário, a pergunta é inevitável: quem são os responsáveis por tanto fogo? Um levantamento do InfoAmazônia revelou que pelo menos 1.389 propriedades rurais na Amazônia, muitas delas ligadas ao agronegócio, estiveram diretamente envolvidas em queimadas ilegais. Juntas, essas propriedades receberam mais de R$2,6 bilhões em crédito rural. Cada uma dessas chamas tem um nome e um CPF ou CNPJ por trás. O problema é que, muitas vezes, o responsável imediato não é o verdadeiro mandante, e sim algum agente a serviço de latifundiários que já acumulam extensas fichas de irregularidades ambientais continuam a operar impunemente, enquanto as áreas destruídas se expandem a cada ano.
Grande área de garimpo ao norte da TI Kayapó. Zona limítrofe com latifúndios. Delimitação do CAR.
As queimadas no cerco à TI Kayapó
Os focos de incêndio que consomem as Terras Indígenas Kayapó, na bacia do Xingu, não são meros acidentes naturais, como muitos tentam fazer crer. Enquanto o monopólio da imprensa e as declarações cínicas de representantes do agronegócio insistem em atribuir essa devastação a fenômenos climáticos, a realidade é muito mais sombria: trata-se de uma estratégia de invasão cuidadosamente orquestrada, visando a subjugação e a expulsão dos povos originários de suas terras.
queimadas
Latifúndio e zona de garimpo na TI Kayapó no dia 01/09/2024. Em vermelho, focos de incêndio sobrepostos em área de garimpo ilegal. Foto: NASA FIRMS
A explosão da garimpagem de ouro nas proximidades dos rios que serpenteiam pelas terras Kayapó e Munduruku começou a ganhar força durante o governo Bolsonaro. No segundo ano do terceiro mandato de Luiz Inácio, a situação se agrava ainda mais, com o governo permanecendo em silêncio e passivo, enquanto o garimpo avança sem freios sobre as terras indígenas. Um levantamento realizado pelo Greenpeace Brasil revela o tamanho da destruição: entre janeiro e junho deste ano, 417 hectares foram devastados, uma área equivalente a cerca de 584 campos de futebol, nas Terras Indígenas Kayapó, Munduruku e Yanomami.
Área devastada pelo garimpo dentro de TI Kayapó com registros de incêndios em 01/09/2024. Foto: NASA FIRMS
O cerco é amplo e sistemático, com cerca de 168.435 km² de terras indígenas cercadas por incêndios, revelando uma tentativa flagrante de expulsar os povos que nelas habitam e abrir caminho para a pastagem de gado, commodities agrícolas e a extração de minérios. A partir de julho de 2024, imagens de satélite mostram um padrão alarmante: os focos de incêndio avançam em direção às bordas dos latifúndios e zonas de garimpo, sempre em clara proximidade com as Terras Indígenas. Essa é uma guerra silenciosa e implacável, em que o fogo se torna uma arma estratégica em um jogo de poder que ameaça não apenas a floresta, mas a própria essência dos povos Kayapó.
Uma investigação conduzida pelo Repórter Brasil mostra que a mineradora Dente di Leone, teria movimentado R$ 847 milhões entre 2021 e 2023 com a comercialização de 3,14 toneladas de ouro oriundos do garimpo ilegal dentro da TI Kayapó. A Dente di Leone utilizava um garimpo fantasma para "esquentar" [legalizar] o ouro extraído ilegalmente da TI Kayapó e, possivelmente, da Terra Indígena Yanomami, em Roraima. A empresa pertence a Pedro Lima dos Santos, um dos principais suspeitos e ex-vereador - que já passou por siglas como PSDB, PSC e, mais recentemente, DEM.
Garimpo ilegal avança sobre Terra Indígena Kayapó em Cumaru do Norte. Área pode ser utilizada em esquema de "garimpo fantasma" de Pedro Lima dos Santos investigada pelo Repórter Brasil.
Registro de foco de incêndio na área de garimpo de Pedro Lima dos Santos em 26/08/2024. Foto: NASA FIRMS
Exploração e expansão agrícola na TI Baú
Em Altamira, a Terra Indígena Baú se tornou um dos principais alvos da voracidade de latifundiários e garimpeiros que buscam expandir suas fronteiras agrícolas e de exploração. Nas margens da TI, a situação é alarmante: um dos latifúndios, que se estende por 496 mil hectares, acumula 83 anotações de sobreposição, evidenciando uma série de irregularidades ambientais. No dia 4 de agosto, diversos focos de incêndio foram registrados exatamente na área de garimpo, destacando a conexão mortal entre a exploração desenfreada e a devastação ambiental.
Imóvel com 83 anotações infracionais no município de Altamira, norte da TI Baú. Foto: NASA FIRMS
As sobreposições encontradas neste imóvel revelam um padrão inquietante. Muitas das infrações documentadas referem-se à destruição e danos a florestas e vegetação em áreas de preservação, onde os limites da ilegalidade são frequentemente ultrapassados. Essas violações não se limitam a danos pontuais; elas atingem áreas protegidas pela legislação brasileira, incluindo reservas legais e zonas de preservação florestal, todas resguardadas pelo Artigo 225 da Constituição e pela Lei no 9.605/98, que trata de crimes ambientais.
Zona queimada próximo da TI Baú.
As anotações de infrações ambientais são variadas, mas todas estão interligadas por um fio comum: a impunidade. Há várias menções a danos à flora que não foram classificadas de maneira específica, mas que estão claramente associadas à proteção ambiental. Em particular, algumas infrações fazem referência a danos diretos ou indiretos a unidades de conservação - áreas vitais para a preservação da biodiversidade. Outras citam o exercício de atividades degradantes sem a licença ambiental necessária, um crime que perpetua o ciclo de destruição.
Área de garimpo avançada dentro de TI Baú, município de Altamira/PA.
Foco de incêndio na mesma área. Foto: Sentinel Hub.
Não muito longe dessa zona devastada, uma vasta área de garimpo expõe uma paisagem retalhada, marcada pela presença de diversos imóveis rurais que se sobrepõem dentro da TI Baú. Essa fragmentação da terra é um sinal sombrio de um território em crise, onde o fogo avança sem piedade. A TI Baú não é apenas um espaço geográfico; é um símbolo da resistência indígena frente a um ataque que visa não só destruir a floresta, mas apagar a identidade e a vida dos povos que nela habitam.
Mesma área, com registro de focos de incêndio em 04/08/2024. Foto: NASA FIRMS
Ferrogrão: uma cicatriz vertical na Amazônia
A Ferrogrão, uma ferrovia planejada para cortar o coração da Amazônia, não é apenas uma obra de infraestrutura; é o símbolo de um cerco que avança sobre as terras indígenas e áreas de preservação ambiental. Desde o seu anúncio em 2014, o projeto, com 933 km de extensão, visa ligar Sinop (MT) a Miritituba (PA) para o escoamento de grãos, em especial a soja. Para o governo e os latifundiários, trata-se de uma solução logística moderna, que reduziria os custos de transporte e facilitaria o acesso aos portos do Norte. Porém, o preço real vai além das cifras econômicas: a destruição de tudo que está pelo caminho.
Focos de incêndio na área estipulada para construir a Ferrogrão em 11/08/2024. Foto: NASA FIRMS
Assim que o projeto ganhou força, os sinais de devastação seguiram a mesma trilha. As áreas por onde a ferrovia passa, incluindo seis terras indígenas e 17 unidades de conservação, começaram a sentir o impacto antes mesmo da primeira linha de trem ser colocada. O boom de especulação fundiária na região trouxe grileiros e latifundiários ávidos por expandir seus domínios, derrubando florestas e incendiando áreas de preservação.
O efeito foi devastador: segundo a análise da InfoAmazonia, as multas por crimes ambientais ao redor da ferrovia dispararam 190% desde o início do projeto. Entre 2014 e 2022, foram mais de 6.900 multas emitidas num raio de 50 km ao longo do traçado planejado. As florestas densas, que deveriam ser protegidas, tornaram-se alvo de um avanço coordenado, incentivado pelo lucro prometido com o escoamento mais barato de grãos.
No governo Dilma Rousseff, a Ferrogrão começou a ser articulada, mas foi sob Michel Temer e Jair Bolsonaro que o projeto ganhou força. Hoje, sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o projeto continua sendo defendido, com recursos assegurados pelo novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), anunciado em 2023.
Focos de incêndio na área estipulada para construir a Ferrogrão em 11/08/2024. Foto: NASA FIRMS.
Do Caos à Lama: garimpo ilegal, latifúndio e mineração
O garimpo ilegal, coordenado por latifundiários e magnatas que exploram camponeses sem terra em regimes servis, e a mineração em larga escala estão entre os maiores pesadelos que atormentam as terras indígenas no Brasil. O Pará, que já testemunhou a turbulência de Serra Pelada - um marco do garimpo ilegal na década de 1980, incentivado por figuras como o Major Curió - agora enfrenta um resgate sombrio desse capítulo. Entre 2018 e 2023, o avanço do garimpo ilegal na bacia do Xingu se espalhou por impressionantes 12,7 mil hectares, sendo que 82% dessa devastação ocorreu em áreas protegidas, conforme aponta o dossiê Garimpo: um mal que perdura no Xingu, elaborado pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pela Rede Xingu+.
'Muitos tentam mudar de vida e morrem': Camponeses denunciam rotina de servidão e repressão em campos de garimpo - A Nova Democracia
Tivemos a oportunidade de entrevistar um casal de garimpeiros que retornaram após longos meses imerso nos garimpos de Ponte Lacerda, no Mato-Grosso. Ele, que aqui chamamos de Mário, já com quase 20 anos dentro de garimpos, e ela, Letícia, na sua primeira experiência em que ficou 7 meses.
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A situação se torna ainda mais alarmante quando analisamos que, entre 2018 e 2022, cerca de 9 mil hectares de floresta foram dizimados dentro das Terras Indígenas da bacia do Xingu. A devastação é particularmente intensa nos territórios dos povos Mebêngôkre Kayapó, nas TIs Kayapó, Baú e Menkragnot. A destruição não se limita ao garimpo ilegal: a presença de mineradoras estrangeiras nas proximidades da TI Baú também se torna uma preocupação crescente. A Serabi Gold, uma mineradora britânica, opera de maneira ilegal no projeto de mineração Coringa, desafiando uma decisão judicial de 2021 que proíbe novas concessões sem consulta prévia às comunidades indígenas.
Área registrada pela Serabi Gold.
Uma investigação conduzida pela Unearthed revelou que a Serabi está funcionando sem a devida autorização do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Apesar das irregularidades e das ordens judiciais, duas agências governamentais renovaram, no ano passado, as licenças da mina. Esse desprezo pela legislação não é apenas uma violação; é uma ameaça direta à sobrevivência da comunidade Kayapó Mekrãgnoti, que depende do rio Curuá, agora envenenado pelas atividades da mineradora. A luta por território se intensifica, enquanto as chamas da destruição consomem não apenas a floresta, mas a cultura e a vida dos povos que dela dependem.
Zona de garimpo ilegal próximo à Serabi Gold.
Guerra por território
As chamas que incendeiam a floresta, cortam as árvores e ressecam o ar com cheiro de madeira queimada não são apenas sinal de destruição. Elas são um ato de guerra. Para os povos Kayapó e Munduruku, o fogo é uma ofensiva declarada, uma arma tática no cerco permanente de suas terras. É o latifúndio avançando como um exército de ocupação, disposto a incinerar o que for necessário para erguer pastagens e monoculturas onde antes havia vida. Cada hectare queimado é um recado explícito: "Saiam do caminho ou queimem juntos".
Enquanto as falidas instâncias do estado brasileiro assistem inertes e o governo silencia conivente, latifundiários organizam grupos paramilitares de extrema-direita, com o objetivo-fim de aterrorizar os povos do campo e roubar suas terras. As frentes de destruição avançam como tropas de choque (quando não com auxílio das mesmas), empurrando aldeias para os limites, tentando estrangular a resistência indígena. Tudo isso, com a mesma brutalidade dos antigos conquistadores colonizadores.
No dia 29 de setembro, São Paulo foi palco de mais uma manifestação histórica. Pela segunda semana consecutiva, milhares de pessoas se reuniram no coração da capital, ergueram bandeiras e faixas contra o latifúndio, contra as queimadas e em apoio à Revolução Agrária. No meio do centro urbano, o grito de "Viva a Revolução Agrária! Morte ao Latifúndio!" ecoou pelas ruas, reunindo estudantes, ativistas e indígenas de diferentes partes do país.
'Pela Revolução Agrária e contra as queimadas': Manifestação anti-latifúndio estremece SP - A Nova Democracia
A manifestação ocorreu no cenário de agudização da luta pela terra no país, tanto por camponeses quanto por indígenas.
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O cerco à TI Kayapó e às terras Munduruku é um chamado à luta de resistência já gestada e desenvolvida no interior do país. E assim como camponeses e indígenas de outras regiões do país, seja pelos posseiros de Barro Branco (PE) ou pelos Guarani Kaiowá (MS), não há fogo capaz de consumir o espírito indomável daqueles que sabem que suas raízes são mais profundas do que qualquer labareda e que seu destino está entrelaçado com a luta pela liberdade e pela dignidade de seus territórios.
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Amazônia:Queimadas
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