Os despojos do genocídio: Quando um povo isolado é extinto, quem fica com a terra?
Uma série do GLOBO e The Guardian aborda como políticas de proteção estão promovendo a resiliência cultural e ecológica em toda a floresta tropical.
Por Daniel Biasetto e John Reid - Reserva Biológica do Guaporé (RO) e Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo (MT), Enviados especiais
24/12/2024 02h00 Atualizado há uma semana
A morte de Tanaru, o último membro de um grupo indígena isolado, levanta questões sobre justiça e o futuro das terras ancestrais na maior floresta tropical do mundo. Por pelo menos 26 anos, um homem conhecido como 'índio do buraco' viveu sozinho, movendo-se por seu território, construindo várias casas, cultivando alimentos e caçando em uma pequena floresta no sudoeste da Amazônia. Ele cavava grandes e misteriosos buracos dentro dessas casas, cujo significado ainda permanece um mistéro para antropólogos e indigenistas.
Quando uma equipe da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) o encontrou em 1996, ele resistiu ao contato, apontando uma flecha por uma brecha em seu abrigo de palha, uma cena registrada no documentário Corumbiara, de 2009. Em 2007, os agentes da Funai fizeram outra tentativa de contato. Mais uma vez, Tanaru os repeliu, deixando um homem gravemente ferido por uma flecha.
Assim, ele viveu sem ser incomodado por mais 15 anos enquanto a destruição ambiental continuava ao seu redor em Rondônia, um dos estados mais desmatados da Amazônia. Alguns o chamavam de "homem do buraco", sem saber por que ele e seus parentes faziam as escavações.
- Não tenho dúvida de que os buracos estavam ligados ao seu mundo espiritual - diz Altair Algayer, agente da Funai que passou décadas protegendo Tanaru e seu território florestal.
Em 2022, Tanaru deitou-se com adornos na cabeça e pescoço em sua rede e morreu. Algayer o encontrou quase um mês depois. Sua morte, que confirmou a extinção de seu povo, tornou o futuro de seus 8 mil hectares de floresta um tema controverso. Advogados locais argumentam contra a demarcação como terra indígena, citando a ausência de população nativa. Procuradores insistem que o território foi historicamente ocupado e, portanto, deve ser protegido, mesmo que não haja mais indígenas vivendo ali. A disputa destaca a luta pelos direitos às terras indígenas e o impacto de atrocidades históricas, incluindo o risco contínuo para povos isolados na Amazônia.
Enquanto Tanaru estava vivo, a Justiça aplicou restrições temporárias de uso para proteger a terra, medidas que geralmente precedem a demarcação permanente de territórios para povos isolados. No entanto, essas medidas não foram eficazes como deveriam, e a restrição de uso tornou-se inválida com a morte de Tanaru.
Sandro Salonski, advogado que representa fazendeiros, afirma que a proteção foi excessiva e "se tornou um instrumento de abuso governamental".
Em resposta a um pedido do GLOBO, ele argumenta:
- Discutir a demarcação de uma área desprovida de população indígena é completamente injustificável e não está prevista em nossa Constituição Federal - argumenta.O procurador Daniel Luis Dalberto, no entanto, discorda e está liderando uma ação judicial para formalizar a área como terra indígena.
- Este território deveria ter sido demarcado há muito tempo. A morte de Tanaru não muda o fato de que os povos indígenas ocuparam esta terra desde tempos imemoriais e, portanto, ela pertence à União - afirma Dalberto em uma ação civil pública.
Sob a Constituição Federal, os povos indígenas têm direitos exclusivos sobre suas terras, formalmente pertencentes ao governo federal. Ao se referir ao homem morto como "o único sobrevivente do povo Tanaru", Salonski reconhece implicitamente que a terra era ocupada por um povo na época em que a União obteve o título.
Defensores dos direitos indígenas dizem que uma decisão que permita o desmatamento da área traz implicações profundas, incluindo colocar em risco a vida de outros povos originários.
Foi um século de massacres, escravidão, remoção forçada e doenças introduzidas que eliminaram muitos povos amazônicos e reduziram os Tanaru a um único homem. As atrocidades do ciclo da borracha na Amazônia ocidental foram documentadas por Roger Casement, enviado pelo governo britânico para investigar a região do Putumayo entre os anos de 1910 e 1911.
Uma carta de um agente do Serviço de Proteção ao Índio, em 1919, relatou que homens que trabalhavam para um seringalista em Rondônia "massacraram 72 homens e muitas mulheres e crianças, deixando em completa miséria 63 mulheres e crianças que fugiram para o nosso posto." Os invasores queimaram seis malocas e todas as plantações do povo.
Novas ondas de colonos e fazendeiros brancos foram encorajadas a tomar as florestas de seus habitantes durante a ditadura militar, de 1964 a 1985. Segundo relatos, indígenas foram envenenados, intencionalmente contaminados com varíola, massacrados em ataques a aldeias e, às vezes, perseguidos por helicópteros, de acordo com relatos, incluindo o relatório impressionante de Jader de Figueiredo Correia de 1967.
No final dos anos 1980, Altair Algayer localizou evidências do povo cuja suspeita de massacre por um fazendeiro recém-chegado deixou Tanaru sozinho. Algayer descobriu uma grande habitação com um buraco de tamanho exagerado, "como se eles tivessem alinhado vários buracos até formar um grande".
- Havia também numerosos buracos na vizinhança - 14 ao todo - e mais indivíduos naquela fazenda - diz Algayer. - Encontramos plantações. Então ficou claro para mim que havia um grupo, não apenas uma pessoa fugindo e se escondendo - conclui.
Massacres
Fábio Ribeiro, coordenador executivo do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI), diz que a Funai falhou em não formalizar a terra dos Tanaru por 26 anos. Agora que está desocupada, tornou-se um caso complicado e sem precedentes.
- Quem será recompensado pelo desaparecimento dessas pessoas? - pergunta Ribeiro. - É muito claro que a terra foi ocupada. Pessoas viviam lá e sofreram um massacre. Não há dúvida.
Ribeiro está encarregado do relatório técnico que fundamentará a proteção da floresta dos Tanaru. Seria a primeira vez, diz ele, que um território seria protegido como uma medida de reparação pela destruição assassina de uma população indígena ao invés de permitir que os invasores o ocupem de vez.
A algumas centenas de quilômetros ao norte, uma situação semelhante ocorreu no território Piripkura, com 243 mil hectares. Em 1984, João Lobato confirmou a presença de povos isolados. Em 1989, o agente da Funai Jair Candor encontrou os dois últimos Piripkura vivendo na floresta.
Lobato havia coletado relatos indicando que uma dúzia ou mais de indígenas isolados estavam na área em anos anteriores. Agora, restavam apenas dois homens.
Candor ouviu sobre um evento que quase dizimou os Piripkura no final dos anos 1970. Eles estavam cruzando um rio, usando uma canoa para transportar pequenos grupos de cada vez. Grileiros interceptaram a embarcação enquanto ela voltava para buscar mais passageiros. Enquanto alguns dos piripkura que esperavam conseguiram fugir para a mata, os invasores reuniram enfileirados os demais na margem do rio e cortaram suas gargantas.
Era algo rotineiro naquela época .
- O indígena era visto como uma fera em forma humana - diz Candor.
Assim como no caso dos Tanaru, o processo de demarcação do território Piripkura tem enfrentado obstáculos por anos. Hoje, o mais velho dos dois sobreviventes, Pakuy, vive em uma cabana na borda da floresta. O mais jovem, Tamandua, perambula pela mata. Candor encontrou uma de suas cabanas pela última vez há cerca de um ano.
Recentemente, sua equipe apreendeu madeireiros dentro do território Piripkura. Eles confiscaram equipamentos e expulsaram os invasores do território. Os madeireiros voltaram 10 dias depois.
A terra foi adquirida por um processo em que lotes são registrados de maneira fraudulenta e, depois, desenvolvidos para se tornarem propriedades que chegam a centenas de milhares de hectares. As terras dos piripkura são "possuídas" sob esse sistema por várias famílias ricas. Uma única família reivindica quase metade do território. A demarcação extinguiria essas posses. Por outro lado, o fim do povo Piripkura poderia remover os obstáculos para o desmatamento da floresta.
Candor afirma que demarcar um território indígena sem mais povos indígenas vivos é uma maneira de combater a ideia de que a limpeza étnica ainda é recompensada com direitos sobre a terra.
- É preciso fazer isso para lembrá-los - diz ele.
Além dos piripkura e dos tanaru, há outras terras onde o mesmo drama pode se desenrolar, como o território Kawahiva do Rio Pardo, onde vivem entre 35 e 40 pessoas em 411 mil hectares de terra ainda não demarcada.
Primeiramente, afirma Fábio Ribeiro, é necessário comprovar que esses povos existem.
- Há 114 grupos isolados diferentes relatados, dos quais 85 a Funai não conseguiu investigar sistematicamente para confirmar sua existência. Isso é muita coisa. O que está acontecendo nessas áreas? Ninguém sabe - sustenta.
Demarcação a passos lentos
O Brasil tem uma política de não contato com povos isolados. Ainda assim, para demonstrar que existe um povo não contatado, alguém precisa se aproximar o suficiente para fotografar tapiris (cabanas), artefatos ou outros vestígios que comprovem sua existência. Funcionários da Funai e ex-agentes enfatizam a drástica falta de pessoal, orçamento e treinamento para realizar esse trabalho delicado.
Em resposta a uma petição da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), em novembro de 2023 o Supremo Tribunal Federal (STF) ordenou que a Funai reforçasse a proteção dos povos isolados e dos territórios indígenas. O tribunal solicitou à Funai justificativas para os possíveis limites das áreas Tanaru e Piripkura, um cronograma para a demarcação da floresta dos Kawahiva do Rio Pardo, além do desenvolvimento de orçamentos, planos de pessoal e um cronograma para verificar povos ainda não confirmados.
O progresso tem sido lento. Em maio, Edson Fachin, o juiz responsável pelo caso, deu um prazo de um mês para um plano de ação. Ele ainda está em andamento. Em 16 de outubro, Fachin reconheceu avanços em algumas áreas. Ele publicou outro cronograma para os itens atrasados, exigindo a conclusão do plano da Funai para os povos isolados e marcos específicos para territórios dentro de mais dois meses.
Passados 25 anos de luta, Candor está prestes a jogar a toalha:
- Se essa demarcação não sair agora, não sai é nunca mais, não é possível um negócio desses - finaliza.
Esta reportagem foi produzida em conjunto com o jornal inglês The Guardian. Daniel Biasetto é editor de conteúdo do GLOBO. John W. Reid é coautor de Ever Green: Saving Big Forests to Save the Planet. Eles foram apoiados nesta série por uma bolsa da Fundação Ford.
https://oglobo.globo.com/brasil/especial/os-despojos-do-genocidio-quando-um-povo-isolado-e-extinto-quem-fica-com-a-terra.ghtml
Índios:Isolados
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