Povos isolados: expedição rastreia indígenas kawahiva no maior território não demarcado da Amazônia
Uma série do GLOBO e The Guardian aborda como políticas de proteção estão promovendo a resiliência cultural e ecológica em toda a floresta tropical. Reportagem participou de uma expedição de 108 quilômetros na selva amazônica para localização e monitoramento de um grupo que nunca teve contato
Por Daniel Biasetto e John Reid - Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo (MT), Enviados especiais
23/12/2024 02h00 Atualizado há uma semana
Em uma expedição com o maior especialista do Brasil na proteção de povos isolados, há esperança diante do aumento populacional, mas também frustração com a demora na demarcação de terras. Em 1999, quando Jair Candor encontrou quatro tapiris (cabanas), várias armadilhas de caça e um local de pesca usado por um grupo até então desconhecido, ele seguiu imediatamente a política governamental e se retirou.
A Constituição de 1988 exige que locais habitados por povos isolados sejam declarados territórios indígenas, protegidos de contatos não solicitados por comunidades externas. Passados 25 anos, Candor ainda luta para que essa parte do sul da Amazônia seja oficialmente reconhecida como território do povo isolado Kawahiva. Eles habitam a maior terra indígena não demarcada, localizada no território Kawahiva do Rio Pardo, em Mato Grosso.
Ainda assim, em meio à devastação da floresta, alguns povos isolados não apenas resistem ao declínio, mas prosperam. Eles têm sobrevivido à expansão da agricultura em larga escala e à exploração madeireira, permanecendo ocultos e prosperando em suas florestas ancestrais - cruciais para a biodiversidade global e o armazenamento de carbono.
Candor, de 64 anos, é o especialista mais experiente na proteção de povos isolados dentro da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Ele chegou à Amazônia aos seis anos, durante um período em que o regime militar incentivava colonos a desmatar a região. Deixou a escola cedo e nunca esteve longe da floresta desde então.
Seus primeiros empregos foram no setor econômico destrutivo, como mineração e extração de borracha. Mais tarde, foi convidado para ser piloto de barco da Funai. Hoje, o veterano de cabelos brancos e barba é um homem convicto de sua causa.
No posto da Funai, na borda sul do território Kawahiva do Rio Pardo, em Mato Grosso, Candor organiza um jogo de futebol descalço ao pôr do sol, na véspera de uma de suas últimas expedições antes de se aposentar , acompanhada pelo GLOBO e o jornal inglês "The Guardian" . O destino é o coração da floresta Kawahiva do Rio Pardo, com 411 mil hectares, onde sua equipe avaliará o bem-estar e a segurança do povo isolado - uma verificação que ocorre a em intervalos de dois a três anos.
Assista ao vídeo da expedição Kawahiva:
Antropólogos acreditam que essa comunidade kawahiva pertence ao grupo com mesmo tronco linguístico tupi-guarani. Praticamente todos os outros membros desse grupo estão em aldeias conhecidas ou morreram nos últimos dois séculos.
Manguita Amondawa, cujo povo foi retirado do isolamento quando ele ainda era criança, integra a expedição para interpretar evidências e, caso ocorra contato acidental, atuar como tradutor.
Duas caminhonetes deixam o posto antes do amanhecer, percorrendo estradas que levam caminhões madeireiros, fogo, pessoas e gado para dentro da floresta. A rota atravessa pastagens com capim africano e palmeiras babaçu, cercadas por árvores em áreas úmidas ou íngremes demais para cultivo. A estrada termina em uma nova fazenda. A partir daí, o grupo caminha por uma trilha de terra por 15 minutos até alcançar a floresta densa, onde os integrantes se revezam no uso de facões para abrir passagem. Serão percorridos mais de 100 quilômetros mata adentro durante oito dias.
O último da fila é sempre um veterano de expedições. Ficar para trás por apenas 30 segundos pode significar se perder enquanto o grupo desaparece em um muro verde. Às 18 horas já está escuro, e o acampamento é montado com redes penduradas à beira de um igarapé, iluminado por insetos bioluminescentes que piscam sincronizados sobre a areia e dentro d´ água.
No dia seguinte, o grupo busca sinais de presença humana nas proximidades. Eles encontram um acampamento recente que, a princípio, Candor atribui a garimpeiros, mas depois identifica como coletores de óleo de copaíba devido à ausência de lixo. O local, a apenas cinco minutos de onde os Kawahiva estavam em 2018, é um achado preocupante.
A 'correria' pela sobrevivência
O renascimento das populações isoladas da Amazônia é um sinal promissor. As florestas onde vivem são as maiores, com menos estradas, minas e fazendas. Matt Hansen, geógrafo da Universidade de Maryland, mapeou em 2021 os maiores remanescentes de floresta tropical, sendo os dois maiores na Amazônia norte e oeste - áreas com vastas concentrações de povos isolados. Essas florestas intactas são os maiores reservatórios de biodiversidade e carbono do mundo.
De acordo com um relatório preliminar de 2024 do Grupo Internacional de Trabalho sobre Povos Indígenas em Isolamento e Contato Inicial, os Kawahiva do Rio Pardo são um dos 61 grupos confirmados por sete governos sul-americanos. Outros 128 grupos foram relatados, mas ainda não verificados. O Brasil responde por 29 dos confirmados e 85 dos não confirmados.
Estima-se que, antes do contato europeu, a Amazônia abrigava milhões de pessoas com alianças complexas, conflitos e estruturas sociais. Entre 600 e 1.200 idiomas eram falados, comparados aos cerca de 300 de hoje, diz a linguista Alexandra Aikhenvald.
Francisco de Orellana, o primeiro europeu a navegar todo o comprimento do rio Amazonas, relatou quilômetros de margens plantadas com mandioca, alimento básico da região. Explorações, missões, seringueiros e outros trouxeram doenças que dizimaram 75% das sociedades e 95% dos indivíduos. Segundo o impressionante relatório Figueiredo, de 1967, os invasores dinamitaram aldeias indígenas, distribuíram açúcar com estricnina e massacraram seus habitantes com facões.
Os sobreviventes se esconderam. Alguns, como os Kawahiva do Rio Pardo, abandonaram a agricultura para evitar a destruição. Em 1938, Claude Lévi-Strauss descreveu um grupo Kawahiva cultivando milho, mandioca, amendoim, pimentas, bananas e outros alimentos.
Hoje, os isolados caçam, pescam, coletam mel e nozes, constroem moradias temporárias e se deslocam para permitir a regeneração dos recursos e permanecerem seguros. Sem grandes plantações ou casas, os Kawahiva permanecem invisíveis de cima.
'Tarde demais para mover acampamento'
Na terceira noite, o grupo acampa perto de onde a equipe de Candor sabe que os Kawahiva estiveram em 2022. Devido ao risco elevado de contato, Candor, Amondawa e Rodrigo Ayres, um agente da Funai com 37 anos, realizam uma missão de reconhecimento. Após uma hora, retornam.
- A boa notícia é que os encontramos. A má notícia é que estão a apenas 700 metros daqui - diz Candor. - É tarde demais para mover o acampamento, então vamos ficar quietos e torcer para que eles não percebam nossa presença - conclui, sem deixar de transparecer certa preocupação.
Eles ouviram três ou quatro pessoas conversando em tom descontraído, sem tentar fazer silêncio, protegidos pelas árvores, a menos de 100 metros de distância. Amondawa quis se aproximar mais para ouvir e tentar compreender a língua, mas Candor rapidamente o puxou de volta.
- Se eles atacarem, será ao anoitecer ou às 5 da manhã - alerta Candor, acrescentando que, provavelmente, não atacariam e, mesmo se o fizessem, não usariam flechas.
"Tapy'ÿja!"
Ao longo dos anos, Candor reuniu dezenas de fotos de tapiris, ferramentas, brinquedos, cestos e fogueiras. Ele já ouviu conversas, cantos e choros.
Em 2007, a Funai decidiu que a pressão de madeireiros e fazendeiros seria insustentável, ordenando que Candor tentasse estabelecer contato com os Kawahiva. Ele tentou, mas foi recebido com pedras e expulso da floresta. Seu superior veio de Brasília e tentou o mesmo, com semelhante resultado. A Funai então abandonou a ideia de contato. A terra foi protegida, mas sob uma série de medidas temporárias que ainda deixavam aberta a possibilidade de que, no futuro, o desmatamento fosse autorizado.
Em 2011, Candor, em desespero, conseguiu se aproximar o suficiente para filmar um grupo de Kawahiva caminhando por uma trilha. Uma criança nas costas de um adulto o avistou e gritou: "Tapy'ÿja!" - a palavra Kawahiva para "inimigo". Mesmo com essa evidência dramática, foram necessários mais cinco anos para que o Ministério da Justiça, que supervisionava a Funai, declarasse a área como território indígena. Para impedir o desmatamento, no entanto, é preciso haver demarcações físicas concretas e a aprovação oficial do presidente do Brasil.
Hoje, Candor não esconde a sua frustração: - Por que eles simplesmente não demarcam logo esse lugar? - questiona.
A antropóloga Janete Carvalho, diretora da Funai responsável pelas demarcações, afirma que a fundação não está cedendo às pressões do lobby agrícola. Em vez disso, o órgão precisa de tempo para garantir a cooperação da Procuradoria-Geral da República (PGR) e afastar futuros desafios legais, e abrir o caminho para a demarcação do território Kawahiva do Rio Pardo.
Ela também aponta para a queda no número de funcionários da Funai nos últimos anos: - Estamos fazendo tudo ao nosso alcance para garantir que Kawahiva seja demarcado em 2025 - sustenta.
O xamã e a coruja
Após a conversa Kawahiva ouvida na noite anterior, o clima da expedição é ao mesmo tempo otimista e tenso. A proximidade do povo isolado é desconfortável. Por volta das 21h, Amondawa sai de sua rede, muito agitado, acordando o acampamento. Ele fala com Candor, senta-se inquieto perto das brasas da fogueira e, depois, se vira para a escuridão, falando urgentemente em sua língua nativa antes de voltar à rede.
Pela manhã, ele explica:
- Eles (isolados) sabiam que estávamos aqui. Um deles se aproximou do nosso acampamento uma vez, depois voltou. Uma grande coruja veio. O xamã deles a enviou ao nosso acampamento. Eu falei com ela na nossa língua. Mostrei que sou indígena, como eles. Disse que esses são bons brancos, que não vieram atacar. Ela entendeu e foi embora - conta.
O grupo documenta os sinais de presença dos isolados antes de se retirar, incluindo os restos de um tapiri - uma casa temporária coberta com folhas verdes de babaçu, alta o suficiente para se ficar em pé. Candor avalia que o tapiri tem alguns anos, enquanto observa sob o teto desmoronado e encontra uma ponta de flecha serrilhada de quase dois metros de comprimento, feita para pesca.
À beira de um pequeno rio, Candor para e observa uma praia de um metro de largura. Então ele vê o que esperava: três cavidades esculpidas na areia grossa - a pegada de uma criança. - Isso significa que eles se sentem seguros. Estão crescendo - diz empolgado.
A equipe também encontra uma pegada muito grande de um homem adulto e um cesto à prova d'água, recém-fabricado, dado o frescor das folhas e cipós. Ao seguir uma trilha discreta, damos de cara com uma árvore recém-cortada no tronco para extrair mel de uma colmeia no interior.
Amondawa acredita que as pessoas ouvidas no dia anterior vieram ao local para colher mel, levando-o ao rio para preparar o que ele chama de "suco da floresta" no cesto. O mundo que os Kawahiva conhecem é rodeado pela floresta, com abundância de riachos e todos os recursos necessários para sobreviver: nozes, água, mel, carne, peixe e frutas.
O grupo inicia a viagem de volta, satisfeito por ora ao constatar que os Kawahiva estão em paz, criando filhos e prosperando, livres de intrusos nocivos - apesar da região sul da Amazônia estar perdendo árvores tão rapidamente que é chamada de "Arco do Desmatamento" e conhecida como "Abraço da Morte". Candor estima que há entre 35 e 40 indivíduos, um aumento em relação aos cerca de 20 indígenas em 1999.
Ele tem esperanças de que os isolados cresçam e retornem ao que eram antes, com tranquilidade para plantar, criar seus filhos e pôr fim à constante corrida para sobreviver.
Candor acredita que a população poderia continuar a crescer nesse território, especialmente se estiverem seguros o suficiente para retomar o cultivo. É isso que ele deseja - embora não tenha certeza de que acontecerá.
"Se eu tivesse vida eterna.., mas já que todos nós temos que morrer um dia, né?! - diz Candor com um nó na garganta: - tudo o que posso fazer é desejar coisas boas para eles. Como tudo isso vai acabar depende de quem continuará o trabalho aqui e quem estará no comando. Depende das próximas eleições, quem entra, quem sai...temos que levar tudo isso em consideração - conclui.
Com essa reflexão, a floresta se impôs no silêncio, deixando claro que a preservação dos Kawahiva é crucial não apenas para eles, mas para a manutenção de um planeta saudável para todos.
Kawahiva: Expedição na Amazônia confirma presença de indígenas isolados
Esta reportagem foi produzida em conjunto com o jornal inglês The Guardian. Daniel Biasetto é editor de conteúdo do GLOBO. John W. Reid é coautor de Ever Green: Saving Big Forests to Save the Planet. Eles foram apoiados nesta série por uma bolsa da Fundação Ford.
https://oglobo.globo.com/brasil/especial/povos-isolados-expedicao-rastreia-indigenas-kawahiva-no-maior-territorio-nao-demarcado-da-amazonia.ghtml
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