'Todo mundo precisa de dinheiro', diz o primeiro etnoprimatólogo indígena da América Latina

Valor Econômico - https://valor.globo.com/e - 07/01/2025
'Todo mundo precisa de dinheiro', diz o primeiro etnoprimatólogo indígena da América Latina
Biólogo Fabrício Suruí, autor de guia sobre macacos, defende o estudo sistemático de conhecimentos dos antepassados

Por Vivian Oswald - para o Valor, de Brasília
07/01/2025 05h05 Atualizado há uma hora

Primeiro etnoprimatólogo indígena da América Latina (biólogo especialista em comportamento de primatas e sua relação com o homem), Fabrício Suruí é autor do inusitado "Guia de primatas do povo Pater-Suruí de bolso". Trata-se de um estudo sobre os macacos que há gerações são parte indissociável da vida cotidiana e espiritual na aldeia onde cresceu.

Ele explica quem são e o que significam esses animais para a cultura local a partir da biologia, que estudou na faculdade, e do conhecimento ancestral, relatado pelos antepassados.

Este último, Fabrício considera, mais do que nunca, elo fundamental para que a ciência entenda como homem e primatas coexistem, desde sempre, de maneira sustentável naquele mesmo microcosmo, e como preservar essas espécies daqui para a frente, quando há inegáveis evidências de populações minguando com o avanço da degradação provocada pelo homem.

"A gente precisa de alguma forma pesquisar esse conhecimento de uma forma mais sistemática. E hoje eu sou muito favorável à sistematização do conhecimento indígena, que não pode ser tratado como se fosse algo inferior", diz.

Para ele, é importante que o indígena assuma a própria narrativa e mostre a sua relação com a natureza. "A gente tem essa relação muito particular, porque a gente veio de lá. Esse conhecimento indígena, que é muito ancestral, está sendo cada vez mais esquecido ao longo do tempo, porque os mais velhos, as pessoas que viveram aquela saga, tinham aquela essência de valorizar totalmente, o que hoje está se perdendo", explica.

A publicação descreve as dez espécies identificadas a partir de relatos de indígenas mais velhos dentro do território Suruí-Paiter, em Rondônia, Terra Indígena Sete de Setembro, demarcada e reconhecida pelo governo federal, em uma área de 248 mil hectares, onde ainda vivem 1.600 pessoas. Pesquisas indicam que não passavam de 800 no primeiro contato, no fim da década de 1960, tendo chegado a 200 indivíduos após a contaminação e mortes por doenças trazidas de fora.

"O processo aconteceu, né? A data que a gente considera oficial é 1969. O contato é uma história muito recente em que a gente fala. São encontros. E uma das coisas que assustam é que, durante esse tempo, houve uma mudança social muito drástica, muito rápida. Não é algo simples. Muita coisa a gente tá perdendo", diz ele, lembrando que os primeiros contatos com os Suruí-Pater foram feitos na geração dos seus avós.

A relação com os primatas é diferenciada e cheia de nuances. Cada um deles tem o seu respectivo nome em tupi-mondé reconhecido pelos Paiter. Três espécies estão na base da alimentação: o macaco-prego, o macaco-aranha e o macaco-velho.

O primeiro, conhecido como Masaykirh entre os indígenas, é parte da dieta. Mas deve ser consumido observando as regras de restrição previstas na cultura. É importante fonte de proteína para adultos e idosos apenas.

Se consumido por crianças ou adolescentes, pode prejudicar o crescimento, causar fraqueza e desânimo e ainda provocar micoses na pele.

O Arime-iter, como chamam o macaco-aranha-de-cara-preta, é o mais importante e sagrado deles. Por isso, é considerado carne preferida e saborosa. Ele pesa em média pouco mais de 9 kg e pode ser consumido sem limitação de faixa etária. Sua gordura ainda é aproveitada na medicina tradicional na natureza para os Paiter. Dentes e ossos dão origem a artesanato.

Há outras sete espécies não comestíveis. Algumas têm importância quase transcendental para a comunidade. O Yaah, ou macaco-da-noite-de-pescoço-vermelho, tem significado muito peculiar na percepção do povo Paiter.

O guia explica que, segundo os relatos dos mais velhos, não é classificado como um macaco, "pois representa um pressentimento muito péssimo para toda a população". É uma espécie de mau presságio. Deparar-se com esta espécie acidentalmente pode significar guerras, ataques de inimigos a qualquer momento e morte, o que gera tensão para toda a comunidade.

"Assim, nosso povo desenvolveu uma forma única de entender esse primata, acreditando que, por estar associado a eventos ruins, ele simplesmente é mais ativo à noite para não ser visto pela comunidade durante as atividades diárias", explica Fabrício na publicação, que conta com ilustrações científicas elaboradas pelo renomado ilustrador britânico Stephen Nash, especializado em primatas.

O Pekoá, ou Guariba, não é considerado fonte de alimento. No entanto, é um dos macacos mais importantes conhecidos no território ancestral, graças à sua apreciada função de indicador da chuva e do amanhecer do dia, a partir da vocalização, uma característica muito marcante.

"Nesse sentido, ao ouvir o rugido dos bugios, os Paiter entendem que o dia está chegando e é hora de acordar para realizar algumas atividades importantes e cotidianas. Diante disso, esse primata sempre foi fundamental para entender a passagem do tempo, tradicionalmente anterior ao contato com a sociedade envolvente", descreve o guia.

O pequeno Manaáh (pouco mais de 2 kg) também tem papel importante na vida dos Paiter, que, ao ouvir a primeira vocalização, entendem que um novo dia se inicia, para fazer suas atividades básica. O povo também acredita que ele tem o dom de fazer parar a chuva.

"Quando chove muito durante o dia, impedindo as atividades diurnas, o grupo de Manaáh começa a vocalizar fortemente, realizando uma espécie de ritual para que a chuva pare ou diminua, demonstrando uma conexão profunda com a mãe natureza diante das necessidades", diz o guia.

Ao sair em campo para registrá-los, Fabrício conseguiu encontrar 8 das 10 espécies. Duas parecem ter-se afastado para áreas ainda mais protegidas, longe das fronteiras da destruição, onde as fontes de alimentos, em geral plantas, são mais abundantes.

O cuxíu-de-nariz-vermelho é um deles. É um primata raro nos últimos anos, que já teve grande importância para subsistência do povo no passado, por ter se tratado de fonte de alimento essencial. Suas propriedades não são adequadas para o consumo das crianças. Há um curiosidade aqui.

As mulheres costumavam criar filhotes órfãos como integrantes de sua família. O macaco-velho, bem maior, também não foi avistado pelo primatólogo. Andam em bandos de 3, no máximo 4 indivíduos, o que, por si só, já dificultaria encontrá-los.

O guia é parte da dissertação de mestrado de Fabrício no Museu Goeldi, no Pará. A trajetória desse biólogo que se considera um conservacionista e que só foi aprender português aos 12 anos é impressionante.

Foi com essa idade que deixou a aldeia para estudar o ensino fundamental em uma escola agrícola. Até ali, falava exclusivamente o tupi-mondé (língua ancestral do tronco linguístico tupi, falada por povos indígenas do norte do Brasil), e isso lhe causou problemas de adaptação. As dificuldades com o idioma fizeram sentir-se um estrangeiro em várias ocasiões.

"Depois, passei para a escola municipal, em Cacoal, onde eu resido hoje aqui em Rondônia. No meu ensino médio, passei um perrengue muito maior, porque ainda estava aprendendo português", diz. Ele não conseguia se expressar direito em público.

"Nessa época, veio na minha mente essa questão de querer fazer biologia. Lá, conheci um professor de biologia. E o cara era muito bom, falava de moléculas, de plantas, vegetais, essas coisas. Aí, meus irmãos falaram para mim: 'Você quer fazer alguma faculdade?'", conta. Fabrício admite que até aquele momento nunca pensou em estudar de fato. "Queria apenas viver a vida."

Foram os irmãos que, diante do gosto que tomou pela biologia, decidiram pagar o primeiro ano da faculdade, em 2013, até que refizesse o vestibular e ganhasse uma bolsa para seguir os estudos. Ali entendeu que era aquilo que queria fazer.

A passagem pela universidade fez Fabrício superar as dificuldades. "As pessoas me receberam muito bem. Indígenas e não indígenas passaram a me procurar para buscar a minha opinião, a minha orientação. Foi um grande salto", afirma. Em uma ONG estrangeira, chegou a trabalhar com primatas.

O mestrado veio de forma natural, quando viu o edital do Goeldi. E a ideia do projeto com os primatas da aldeia ganhou força. Era uma forma de aproximar o que sabia da antropologia.

"A gente brincava, criava macacos. Eu consumia os macacos. Hoje, não mais, porque tenho uma paixão muito maior por esses animais. Quero só trabalhar com a conservação daqueles animais. É uma questão cultural, mas eu acho que não é necessário", diz.

"A gente não precisa consumir mais. Mudou a vida, o território. As pessoas estão querendo trabalhar de outra forma. A gente está retirando o habitat desses animais. Então, vamos tirar da dieta."

Fabrício conta que evita até mencionar nas suas redes sociais os primatas criados pelas famílias na aldeia para não incentivar que o hábito seja reproduzido da reserva para fora. Tudo por uma questão de preservação da espécie.

"Tem muita gente que quer ir fazer fotos com esses animais, criá-los como pet. Isso acaba influenciando outras pessoas, querendo criar mais."

Fabrício não se tornou vegetariano, pois diz que o corpo não permite, mas espera "chegar lá um dia". Ele agora tem cortado da dieta a carne de boi. "Porque eu sei que essa fonte de proteína está muito relacionada com o desmatamento da Amazônia. Parece que eu estou criando uma espécie de nojo dessa carne de alguma forma."

Seu maior objetivo como pesquisador e indígena, conta, é registrar tudo o que vê. "Porque realmente, ao longo do tempo, a cultura morre, a língua morre. A gente precisa manter essa daí em atividade", afirma. "Nosso povo ainda fala o tupi-mondé. Nossa língua ainda é muito dominante entre a gente. Independentemente do lugar em que eu esteja, com meus irmãos [são dois], eu falo em Tupi-mondé, na cidade, em qualquer lugar. Não vejo a necessidade de falar em português."

Mas ele não vê o mesmo ímpeto entre as novas gerações, sobretudo por conta da internet e dos celulares, cada vez mais presentes nas aldeias. "Uma criança de 2 anos, 3, fala duas línguas - o português e nossa língua -, mas, na maioria das vezes, prefere falar em português. Isso é assustador."

Ele explica o que o incomoda. "É péssimo, porque isso acaba aquele interesse pela cultura e pela história. O que significam aqueles animais para nós, o que significa aquele árvore, porque essa natureza, essas plantas, esses animais, têm significado, história", diz. "Por que a gente não pode se aproximar daquele animal ou não pode usar aquela planta? Por que você não come aquele tipo de fruta, por que você não come o macaco?"

Por essa razão, o biólogo tem levado seu guia às escolas. "Muita criança Suruí não sabe nem identificar os macacos, nunca ouviu o som deles ao amanhecer", afirma. Fabrício vem há tempos colecionando as gravações dos ruídos do macacos, que registra no gravador que comprou com os recursos da bolsa de estudos. Quer ainda fazer uma distribuição do material em todas as escolas no Suruí. "Temos que buscar alternativas para conservar as espécies e precisamos chamar os jovens para participar."

O biólogo enfatiza a necessidade de alavancar os saberes das comunidades e de levar a bioeconomia para as florestas. Os indígenas estão ocupando cada vez mais espaços, reconhece, mas isso não tem se traduzido em mudanças significativas. "Não vejo um pacto para desenvolver de forma responsável centros de pesquisa para trabalhar as cadeias produtivas como fonte de renda e sistematizar o conhecimento. Todo mundo precisa de dinheiro", diz.

"Hoje, já não há mais como se voltar atrás [à vida como era no passado nas aldeias]. Tem que ter uma estratégia de inovação para os povos indígenas."

Para ele, é preciso que as prefeituras, eleitas também pelo voto indígena, lembrem-se das comunidades, em todos os aspectos do cotidiano. "Até para a coleta seletiva de lixo. Esse encontro tem que acontecer em todos os níveis de governo. Isso não é só problema do governo federal. Tem que haver parceria com os governos regionais, os municípios, ONGs, a sociedade civil. Não é apenas uma questão federal e ponto."

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PIB:Rondônia

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