Criticado por indígenas e com casos de malária em alta, médico pede para deixar coordenação de saúde Yanomami
Mesmo com histórico de atuação na região, Marcos Pellegrini entrou em rota de colisão com lideranças locais, que citam falta de transparência e de diálogo
Lucas Altino
19/12/2024
O médico Marcos Pellegrini pediu exoneração da coordenação do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Yanomami nesta segunda-feira. Apesar de ter experiência em saúde indígena, inclusive no próprio território Yanomami, o então coordenador vinha sofrendo críticas de lideranças e foi alvo de uma carta no final de outubro que pedia a sua saída. As principais queixas eram sobre a continuidade dos altos casos de malária na região e a falta de "transparência" na informação de dados sobre esse problema. Uma discussão no último Fórum de Lideranças Yanomami e Ye'kwana, em setembro, teria sido o estopim para o rompimento da relação com os indígenas.
Pellegrini, que assumiu o cargo em julho do ano passado, enviou seu pedido de exoneração à ministra de Saúde Nísia Trindade nesta segunda (16). Em mensagens, ele afirmou: "Agradeço a todos pela oportunidade de colaborar na reconstrução do subsistema de saúde indígena e pelo aprendizado que tive em participar desse processo. Estarei à disposição para contribuir com o que for possível", escreveu.
Nos últimos anos, o território Yanomami sofreu com aumento da invasão do garimpo ilegal, o que gerou comprometimentos à saúde da população. Em janeiro de 2023, o governo federal decretou "emergência pública" na Terra Indígena Yanomami (TIY), que fica em Roraima, após o registro de casos de desnutrição severa e de malária. Além de prometer reestruturar o distrito de saúde local, que vinha em situação precária nos anos anteriores principalmente em função da presença de garimpeiros e criminosos que, em alguns polos, chegaram a sequestrar pistas de pousos usados pelo serviço de saúde, o governo montou uma força tarefa especial para remover os invasores.
Um ano depois, porém, os problemas continuaram sendo registrados, como mostrou O GLOBO. O número de mortes de yanomami divulgado pelo governo federal, por exemplo, aumentou em 2023, em relação a 2022. Como justificativa, o governo diz que na gestão anterior as estatísticas eram subnotificadas. Mas o fato é que a situação sanitária continuou deficiente.
'Malária continua matando muitos yanomami'
Presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami/Ye'kuana, Junior Kekurari Yanomami afirma que a malária continua matando muitos yanomami. Segundo ele, apesar das contratações de mais médicos - segundo o Ministério da Saúde o número de profissionais aumentou de 690 para 1,5 mil no último ano - muitas comunidades continuam desassistidas. Ele diz que as visitas médicas, com foco no combate à malária, só acontecem a cada três meses, em alguns locais. Na comunidade Auaris, a última visita teria sido há seis meses.
- A malária continua muito forte, a situação é preocupante. Há muitos profissionais agora, então não é falta de recursos humanos. O que falta, talvez, é planejamento e organização. Em muitas comunidades só se chega de helicóptero, por isso precisa de planejamento melhor - explica Junior, que se queixa da falta de "diálogo". - Tento acompanhar, mas não tenho respostas. Somos excluídos.
Histórico na TIY e discussão em reunião
A falta de transparência nos dados e de respostas às solicitações das lideranças indígenas foram a principal queixa em relação à gestão de Marcos Pellegrini. O diálogo insatisfatório chamou ainda mais a atenção porque Pellegrini já atuou na TIY nos anos 1980 e 90 e mantinha bom relacionamento com os yanomami. Por isso, ele foi uma escolha técnica do Ministério da Saúde.
Formado em medicina pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Pellegrini publicou, neste ano, o livro "Watupari: um testemunho da resistência do povo Yanomami", que narra as violências contra os yanomami e também sua resistência e força cultural. O epitáfio do livro foi escrito pela ministra da Saúde, Nísia Trindade, e o próprio Junior Yanomami foi um dos indígenas a dar depoimento, elogioso à atuação de Pellegrini na região.
Junior diz que, apesar dos problemas recentes, mantem seu "respeito" à história de atuação de Pellegrini. Mas admite frustração com a falta de resultados à frente do distrito sanitário.
- No começo acreditei muito, mas não sei o que aconteceu. Como ele é antropólogo, médico sanitarista e professor, a gente pensou que ele ia ter diálogo e respeito melhor com as comunidades. A gente tentou conversar sobre informações de dados, da saúde yanomami, sobre estatísticas de nascimentos e óbitos, malária, mas não tinha essa transparência. Por isso questionamos muito, porque precisamos acompanhar o que realmente está acontecendo, e porque não diminuem os casos de malária.
O estopim da insatisfação das lideranças yanomami com Pellegrini, explica Junior, foi o Fórum de Lideranças Yanomami e Ye'kwana, um encontro anual com lideranças e autoridades para tratar sobre as demandas e resultados no território, ocorrido no final de setembro. Segundo Junior, diante das queixas acerca do problema da malária, o médico teria respondido que já contraiu a doença 20 vezes, mas nunca morreu.
- O Marcos respondeu com falta de educação, com ignorância. Isso é falta de respeito com as vidas. Ele tomou medicamentos, mas muitos yanomami não tomam, e morreram de malária - afirmou o presidente do conselho, que diz que a situação gerou revolta entre diversas lideranças.
No mesmo fórum, o Ministério da Saúde afirmou que 5,2 mil indígenas voltaram a ter assistência após o decreto de emergência pública e que somente a Secretaria de Saúde Indígena investiu R$ 221 milhões no território Yanomami em 2023. Até agosto deste ano, foram R$ 216 milhões. O secretário de Saúde Indígena, Weibe Tapeba, informou, no encontro, uma redução de 33% na mortalidade.
Carta pediu afastamento do coordenador
Após o fórum, no dia 30 de outubro, o Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami/Ye'kuana enviou uma carta à ministra Nísia Trindade e a Weibe Tapeba, com pedido de afastamento de Marcos Pellegrini.
Segundo a carta, a situação era de "desorganização" e que a "falta de gestão" precarizava o serviço de saúde. As lideranças também reclamaram da ausência de informações técnicas detalhadas sobre o andamento das ações e intervenções no território Yanomami" e afirmaram que, sob coordenação de Pellegrini, a equipe demonstrava "baixa coesão e profissionalismo".
"O funcionamento do DSEI Yanomami está prejudicado devido a falhas recorrentes na gestão e na resposta a demandas críticas, comprometendo a assistência e a segurança da comunidade Yanomami, além da falta de profissionalismo da equipe sob sua coordenação que também contribui para um ambiente de trabalho insatisfatório, impactando negativamente a qualidade dos serviços prestados à população Yanomami e o desenvolvimento de atividades essenciais", diz trecho da carta.
Procurado, o Ministério da Saúde disse que está "acompanhando de perto a situação" e que, após a saída de Pellegrini, a função foi assumida interinamente por Francisco de Almeida Cardoso, coordenador substituto do Dsei-YY. Nesta semana, a secretária adjunta da Secretaria de Saúde Indígena, Lucinha Tremembé, está na região para garantir a continuidade das ações de saúde, e a pasta está "em tratativas com as lideranças e suas organizações representativas para assegurar uma transição tranquila e dar seguimento ao planejamento em andamento no território".
Marcos Pellegrini preferiu não se manifestar.
https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/12/19/criticado-por-indigenas-e-com-casos-de-malaria-em-alta-medico-pede-para-deixar-coordenacao-de-saude-yanomami.ghtml
PIB:Roraima/Mata
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