Manaus (AM) - O Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), comunicou à agência Amazônia Real que recebeu denúncias de lideranças indígenas das etnias Mayuruna/Matsés, Marubo, Matis e Kanamari da Terra Indígena (TI) Vale do Javari, em Atalaia do Norte, oeste do Amazonas, sobre uma série de irregularidades na gestão do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Vale do Javari, órgão subordinado ao Ministério da Saúde. Desde setembro de 2024, líderes indígenas se mobilizam para expressar sua insatisfação com a coordenação de Adelson da Silva Saldanha, conhecido como Kora Kanamari.
"O Ministério da Saúde segue rigorosamente os protocolos institucionais para apuração de possíveis irregularidades, em articulação com os órgãos de controle, como o Ministério Público Federal e a Controladoria-Geral da União. Caso constatadas irregularidades, serão tomadas as medidas cabíveis, assegurando a transparência e a eficiência na gestão dos recursos públicos e dos serviços prestados às comunidades indígenas", declarou o MS.
Em uma carta-denúncia, enviada também ao Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas e a Controladoria Geral da União, as lideranças acusam o coordenador do órgão de uso indevido de recursos públicos, desvio de combustíveis e venda de patrimônio público. "Desde que Adelson da Silva Saldanha assumiu a coordenação do Distrito Sanitário Especial Indígena Vale do Javari, vem agindo de forma incompatível com a competência do cargo que ocupa, cometendo diversas irregularidades na administração pública", diz um trecho do documento.
As lideranças relataram ainda sobre equipes de saúde incompletas nas aldeias e falta de insumos e medicamentos básicos, o que está prejudicando o atendimento às comunidades indígenas do Vale do Javari. Os profissionais de saúde enfrentam longas estadias nas aldeias, de 116 a 120 dias, sem alimentos ou condições mínimas de trabalho, de acordo com as lideranças indígenas.
Na carta, outra denúncia citada é o nepotismo institucionalizado e recorrente. As lideranças acusaram Kora Kanamari de perseguir e demitir colaboradores, visando beneficiar parentes e aliados. "O nepotismo é uma prática comum na atual gestão. Desde que assumiu o cargo de coordenador, Adelson tem promovido demissões em massa sem justificativa, apenas para abrir espaço para parentes e amigos ou como moeda de troca", segundo outro trecho da carta.
Antes, os indígenas chegaram a acusar Kora Kanamari de usar a estrutura pública do distrito sanitário na campanha política de Deizimar Freitas (PSD), que foi candidato [derrotado] a prefeito de Atalaia do Norte nas eleições municipais de 2024.
Apesar das várias denúncias feitas pelos movimentos indígenas do Vale do Javari, as lideranças dizem que as autoridades não tomaram medidas efetivas para solucionar os problemas. "Estamos sem medicamentos nas aldeias, sem condições de permanência dos profissionais nas aldeias e com profissionais sendo ameaçados. A gente tem provas e já denunciamos isso, mas ninguém toma providência", enfatizou a liderança Vitor Mayuruna em entrevista à Amazônia Real.
Kora Kanamari diz que é perseguido
Procurado pela reportagem para falar sobre as denúncias de irregularidades na coordenação no Dsei, Kora Kanamari afirmou que está sofrendo perseguição política desde sua posse como coordenador, em abril de 2023. Segundo ele, o Dsei Vale do Javari é avaliado e acompanhado pela equipe técnica da Sesai, em Brasília, que nunca atestou negligências no período em que esteve à frente do órgão.
"O Dsei é aberto para qualquer pessoa que chega aqui, e queremos incentivar os parentes a falar como é que está o atendimento da nossa equipe nas comunidades, se há falta de profissionais e medicamentos. A gente sofre essa perseguição dos funcionários da prefeitura", alegou.
O coordenador declarou que, apesar das dificuldades que a estiagem severa deixou na região, o órgão iniciou neste mês de janeiro a rota da troca de equipes e abastecimento de combustível e insumos nas comunidades. "Nossas ações como odontologia e combate a malária estão todas todas programadas. Esse mês já fizemos quase toda a nossa cobertura de troca de equipe via fluvial, e um número significativo de abastecimento de combustível. É muito difícil fazer o abastecimento de aldeias como a Lobo [do povo Mayuruna], que demora de 15 dias a 20 dias de embarcação para os profissionais chegarem. Nós estamos retomando toda essa questão, então eu não sei qual é essa irregularidade que os parentes falam", disse.
Com 8, 5 milhões de hectares, a Terra Indígena Vale do Javari, que fica na fronteira do Brasil com o Peru, tem uma população de 6.317 pessoas e 26 etnias indígenas, entre povos isolados e de recente contato como os Korubo. As etnias que têm envolvimento com a sociedade nacional são os Kanamari, Kulina Pano, Marubo, Matis, Mayuruna e Tsohom-Syapa. A região é ameaçada pela pesca predatória, caça ilegal de animais silvestres, garimpos, madeireiros e narcotráfico.
A região do Vale do Javari ficou conhecida internacionalmente após os brutais assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, em 2022. Kora Kanamari ajudou nas buscas aos dois defensores.
"Os rios já estão cheios e continua faltando de tudo. O insumo principal para realização de atividades das equipes de saúde de áreas, como gasolina, continua faltando em todos os pólos bases. Qual vai ser a desculpa agora?", questionou Vitor Mayuruna.
Sem atendimento
Em outra carta de denúncia, enviada à Amazônia Real, o cacique Waki Mayuruna, da aldeia Lobo, relatou que os pacientes carecem de produtos de higiene pessoal, como pasta de dente, escova de dente e sabonete. A liderança exigiu a saída de Kora Kanamari da coordenação do Dsei.
Em entrevista à reportagem, Waki Mayuruna afirmou que faltam medicamentos e agentes de saúde na aldeia, e que um tio seu morreu sem atendimento há menos de uma semana.
"Ele não conseguiu atendimento, ninguém sabe o que se passava com ele, por isso eu fico chateado. Ninguém mandava consultar aqui, nós não queremos ir para Tabatinga para consultar, o doutor tem que ser mandado aqui dentro da aldeia", declarou.
Segundo os líderes indígenas, a ausência de medidas corretivas por parte da Sesai e do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi), órgão que supervisiona e monitora as ações do Dsei, agrava a precariedade do serviço. "É uma coisa absurda. Enquanto o Condisi não falar, vai continuar assim sem medicamentos nas aldeias", reforçou Vitor Mayuruna.
Omissão
As lideranças indígenas pedem por intervenção urgente das autoridades como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), para fazer uma investigação detalhada sobre as denúncias e garantir de condições de trabalho para os agentes de saúde nas aldeias, além da substituição do coordenador atual.
Em uma reunião realizada no dia 30 de dezembro de 2024, na sede da Associação Marubo do Médio Rio Curuçá (AMAS), em Atalaia do Norte, os dirigentes das associações Mayuruna, Marubo e Kanamari avaliaram a atuação do Dsei Vale do Javari e do Condisi.
Eles dizem que a atuação do coordenador do Dsei, Kora Kanamari, foi amplamente criticada na reunião. Para muitos, sua gestão tem sido marcada pela falta de transparência e pela escolha de profissionais sem experiência ou qualificação adequada.
Na aldeia São Sebastião, do povo Marubo, os indígenas relataram que a falta de agentes de saúde sobrecarrega os poucos profissionais disponíveis. Além disso, medicamentos estão escassos e a infraestrutura da farmácia da comunidade está comprometida.
O cacique Pilingo, da aldeia Irari, do povo Kanamari, destacou a grave situação enfrentada pelas aldeias Kanamari, que lidam com a falta de gasolina e medicamentos no Rio Itacoaí. Segundo o relato da liderança, mais de dez Kanamari já perderam a vida devido à crise na saúde.
Na aldeia Kanamari do rio Irari, a busca por profissionais de saúde se intensifica, mas a escassez de gasolina também é um obstáculo. O manejo de pescado com uso de gasolina do Dsei foi mencionado como outro problema grave e recorrente. "Nada aconteceu. Ele faz manejo de pirarucu e virou uma bagunça no distrito", diz Vitor Mayuruna.
A partir da reunião das lideranças, uma carta foi enviada a Sesai pedindo exoneração de Kora Kanamari do cargo de coordenador do Dsei, sob a alegação de ocupar a sede do órgão se a demanda não for atendida.
"A gente vai continuar pedindo o direito de acompanhamento da saúde indígena", disse a liderança Jaime Mayuruna, da Organização Geral dos Mayuruna (OGM).
O que dizem as autoridades
Desde o início de 2025, a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), subordinada ao Ministério da Saúde, afirma ter reforçado o provimento de profissionais de saúde por meio de parcerias com a Agência Brasileira de Apoio à Gestão do Sistema Único de Saúde (AgSUS) e entidades sem fins lucrativos selecionadas via Chamada Pública. Segundo a nota, essa iniciativa tem como objetivo otimizar a cobertura assistencial e fortalecer as equipes multiprofissionais para garantir uma assistência contínua e de qualidade às comunidades do Vale do Javari.
Medidas também estão sendo adotadas para mitigar as dificuldades logísticas enfrentadas na região, que dependem de transporte fluvial e aéreo para o acesso às aldeias. Entre as ações citadas estão o aprimoramento do planejamento logístico, a ampliação de parcerias interinstitucionais e o investimento na capacitação das equipes locais, para atuar de "forma integrada e sensível às especificidades culturais das comunidades atendidas".
A Sesai reforçou ainda o compromisso com a garantia de assistência integral às comunidades indígenas, destacando o diálogo permanente com as lideranças locais e o monitoramento das ações para garantir que as necessidades das populações do Vale do Javari sejam atendidas.
A Funai não respondeu aos questionamentos até o fechamento desta matéria.
O Ministério Público Federal confirmou o recebimento da denúncia sobre as irregularidades no Dsei do Vale do Javari. As investigações ocorrem em sigilo e não há outras informações disponíveis.
https://amazoniareal.com.br/ministerio-da-saude-apura-novas-denuncias-no-dsei-vale-do-javari/
PIB:Javari
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