Manaus (AM) - Um jovem indígena de um povo isolado da região de Mamoriá Grande, localizada entre os municípios de Pauini e Lábrea, no sul do Amazonas, apareceu subitamente na tarde da última quarta-feira (12), na comunidade Bela Rosa, da Reserva Extrativista do Médio Purus. O jovem interagiu com alguns ribeirinhos, mas não foi possível estabelecer uma comunicação pois sua língua é desconhecida. Conforme apurou a Amazônia Real, até o momento, ainda não se sabe a qual tronco linguístico do indígena pertence. Os povos contatados predominantes daquela região falam línguas do tronco arawá.
Aparentando ter 20 e poucos anos, cabelos pretos nos ombros e corpo franzino, o jovem estava com uma vestimenta trançada de base vegetal, provavelmente de envira ou cipó. Os ribeirinhos mostram a ele um isqueiro e um celular, pelo qual ele ficou curioso. Ainda na quarta-feira ele foi encaminhado para a Base Mamoriá Grande, da Frente Etnoambiental Madeira Purus (FPE), da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
A Amazônia Real apurou que uma equipe da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) fez o atendimento de saúde e realiza bloqueio sanitária na comunidade, com realização de testes de covid e triagem de sintomas gripais nos ribeirinhos, além de familiares das pessoas que tiveram contato com o indígena.
Desde 2021, já havia informações de um povo em isolamento voluntário naquela região, conforme relatório elaborado pela Frente Etnoambiental Madeira-Purus após expedições feitas em agosto e setembro daquele ano. A FPE e organizações indígenas e indigenistas cobraram da Funai medidas de proteção territorial, mas não foram atendidas. A Funai estava sob gestão do delegado Marcelo Xavier, na presidência de Jair Bolsonaro. Organizações indígenas também tentaram pressionar o órgão para iniciar a proteção, sem êxito.
Apenas em dezembro de 2024 é que a Funai publicou a portaria de Restrição de Uso do território dos "Isolados de Mamoriá Grande", como agora são chamados. "A área de Mamoriá Grande enfrenta uma série de desafios que tornam urgente a sua interdição legal", diz a Funai.
A área onde vivem os "isolados do Mamoriá Grande" é fortemente pressionada por invasões, retirada de madeira, caça e pesca ilegal, segundo um relatório da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI). Entre agosto de 2021 e janeiro de 2022, foram mais de 27 mil árvores adultas derrubadas.
O líder indígena Zé Bajaga, coordenador da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp), disse à Amazônia Real que a portaria de restrição de uso já não é suficiente. Ele afirma que a Funai precisa iniciar o processo demarcatório.
"Isso [a portaria] foi pressão da gente. Na nossa visão, o Estado brasileiro tem que fazer o ato de proteção territorial, o ato demarcatório dessa terra. A Funai tem que estender ainda mais o território. Ele [o jovem indígena] apareceu e conseguiu sair. Então, a área dele está muito pequena para um povo nômade, para quem vai de canto a canto".
Zé Bajaga espera que a Funai e outros órgãos do governo deem atenção agora para a saúde indígena, para que o jovem não esteja contaminado após contato com os ribeirinhos e que não transmita doença para outros de seu grupo. "Tem que cuidar da parte sanitária, epidemiológica. Se não tiver isso, o povo dele pode ser dizimado".
A Funai divulgou uma nota informando que monitora a tentativa de contato do jovem e que acionou plano de contingência. A reportagem tentou obter informações sobre essas medidas, mas não recebeu respostas até a publicação desta reportagem.
Nesta sexta-feira, a Funai atualizou informações sobre o jovem isolado. Segundo a Funai, o jovem foi levado até a base ainda na quarta-feira, mas na tarde desta quinta, ele retornou à floresta. A Funai não informou se equipes do Distrito Sanitário Médio Purus e do Alto Juruá chegaram a fazer algum atendimento médico ao jovem antes de ele voltar à floresta.
O órgão informou que para reforçar a proteção ao indígena e sua comunidade, duas equipes da Funai estão a caminho da Bape Mamoriá: uma da Frente de Proteção Etnoambiental Madeira-Purus (CFPE-MP) e outra da CGiirc. Outra equipe da Sesai também irá somar ao grupo. Elas permanecerão no local por tempo indeterminado, monitorando e acompanhando a situação.
"A equipe da CGiirc contará com uma colaboradora indígena do povo Juma, experiente em monitoramento de povos isolados e falante da língua Kawahiva [do tronco Tupi], que pode ser a mesma utilizada pelo povo em questão", diz a nota (leia aqui).
Pedido de proteção
A aparição do jovem indígena não surpreendeu o líder Zé Bajaga. Ele disse à Amazônia Real que há quatro anos havia informações sobre trânsito de indígenas em isolamento naquela região.
"Já tinha muitos relatos de presença de parentes na época. Apareceu um grupo de pessoas acima do Bela Rosa, que é que fica mais próximo do Mamoriá Grande. Foi naquele momento que pedimos da Funai restrição de uso".
Ele ressaltou que durante a expedição feita pela Frente de Proteção Etnoambiental Madeira Purus foram encontrados vestígios da presença dos indígenas.
Em fevereiro de 2022, a Focimp cobrou da Funai em uma carta denúncia e de repúdio pelo fato do órgão se negar a tomar medidas de proteção do território. "É inaceitável a postura de não agirem concretamente em mais de cinco meses, colocando em risco nossos parentes isolados do rio Mamoriá", diz trecho da carta.
Sem respostas novamente, a Focimp enviou um pedido ao MPF em junho de 2022 para que o órgão tomasse providências. Um novo apelo, junto com outras organizações, entre elas a Coiab, foi feito em outubro de 2022.
"Assistimos com estupor ao silêncio do órgão indigenista ao não encaminhar nenhuma proposta de interdição da área e abandonar os direitos territoriais de um povo indígena isolado confirmado. A Funai tampouco estabeleceu BAPE ou Posto de Controle de Acesso na região - mesmo tendo recursos humanos e orçamentários suficientes para tanto. Desta forma, a Funai segue ignorando a recomendação do Ministério Público Federal, emitida há quase 90 dias, descumprindo de forma irresponsável todos os prazos estabelecidos".
Zé Bajaga lembra que todas as tentativas de proteção territorial eram descredibilizadas por autoridades e pela população local. Segundo ele, o Estado brasileiro demorou para agir. Para ele, o jovem indígena apareceu na comunidade pedindo proteção, mesmo que até o momento ainda não se conheça sua língua.
"É uma hipótese, mas esse aparecimento é um pedido de apoio, uma forma de dizer que eles são vulneráveis. Isso no meu ver. A área deles ficou pequena para eles. E muita gente está adentrando na terra deles, matando o alimento deles, tirando a caça, a pesca. Eu falo isso analisando a fala dele, mesmo sem entender. Ele não estava agitado, não estava nervoso. Ele estava curioso. Como federação [Focimp], digo que a fala dele é de um povo que quer proteção".
Em março de 2022, o MPF no Amazonas recomendou adoção de medidas necessárias para impedir que ocorram conflitos com extrativistas e madeireiros, além de evitar desmatamento na área intocada. Entre as medidas, o MPF pediu a publicação da Portaria de Restrição de Uso, para "garantir a restrição de acesso até que terminem as articulações e expedições de monitoramento realizadas pelo órgão indigenista."
A demora da Funai em atender os apelos dos indígenas, de indigenistas e do MPF recebeu críticas das organizações. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) denunciou a demora por parte da Funai e solicitou em fevereiro de 2022 medidas urgentes do governo brasileiro.
Para o coordenador da Coiab, Toya Manchineri, é preciso que se avance urgentemente a demarcação do território e na estruturação da rede de apoio de monitoramento territorial e saúde de forma integrada para atender os isolados em Pauini e Lábrea, que envolva governo federal e governo do Amazonas.
"Precisamos retomar urgentemente os espaços de diálogo para ter na prática as condições adequadas de um plano de contingência efetivo", disse à reportagem.
Toya citou outras terras indígenas em situação de vulnerabilidade no sul do Amazonas que também precisam de atenção das autoridades públicas, como Catipari-Mamoriá, Camadeni, Igarapé Grande, Apurinã do Igarapé Mucuim.
"Essa medida também inclui a saúde dos ribeirinhos, que só tem a ganhar. Se vier uma estrutura de saúde adequada e que possa melhorar a qualidade de vida dos indígenas e extrativistas daquele entorno do território dos isolados do Mamoriá e Apurinã do Igarapé Grande e Apurinã e Camadeni de Catipari - Mamoriá também".
Língua desconhecida
Ainda não se sabe a que povo o jovem indígena pertence. O indigenista Mário Azevedo, do OPI, disse à Amazônia Real que uma das medidas agora é tentar descobrir o parentesco linguístico dele.
Um indígena do povo Jamamadi tentou fazer comunicação, mas não conseguiu. Naquela região, predominam os povos do tronco arawá, entre eles Jamamadi, Deni, Kulina, Banawá, mas aparentemente, o jovem não falava uma língua desse tronco.
A outra hipótese é que ele fala uma língua do tronco tupi, possivelmente kawahiva. Se for confirmado, isso seria surpreendente, pois a área fica a quilômetros de distância onde vivem indígenas falantes deste tronco. Entre eles, estão os Juma, no sul do Amazonas, e os Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia.
"Não se sabe o motivo desse indígena ter saído do isolamento. A gente não sabe ainda que língua ele fala, mas está sendo feita uma articulação para a gente conseguir encontrar alguém que entenda essa língua", disse Azevedo.
Um vídeo do jovem conversando com os ribeirinhos foi divulgado em grupos de Whatsapp. É possível ouvir sua voz e sua fala. Nesta sexta-feira, segundo Azevedo, haverá novas tentativas de identificar o tronco linguístico do jovem.
Aquela área do sul do Amazonas, há também indígenas de recente contato e isolados, como os Zuruwahá, que falam uma língua do tronco arawá, e os Hi-Merimã, respectivamente. Portanto, o desconhecimento sobre a língua do jovem isolado desta semana tem intrigado especialistas e indigenistas ouvidos pela Amazônia Real.
A linguista e antropóloga Adriana Huber, que trabalhou durante muitos anos com indígenas daquela região do sul do Amazonas, viu o vídeo e não conseguiu entender a língua do jovem. Mas ela conseguiu identificar alguns sons do tupi, vagamente.
"A língua que ele fala não parece nada com o que eu tenho conhecimento. Não parece nada com arawá. Mas também é arriscado dizer totalmente que é tupi, pois meu conhecimento é superficial", disse Adriana Huber, que demonstrou mais preocupação com a saúde do jovem.
"Claro que minha preocupação é dele pegar alguma doença. Mas suponho que a Funai esteja acionando um plano de contingência para ele".
Restrição de Uso
A FEP Madeira Purus faz o trabalho de monitoramento desses grupos desde 2021, quando foi confirmada a presença de isolados. Atualmente, há um posto de vigilância dentro da área de restrição de uso, próximo dos limites da Reserva Extrativista (Resex) do Médio Purus, fruto de um acordo entre a Funai, o ICMBio e as comunidades da Resex. Além disso, está em fase final a construção de um posto de vigilância dentro da área protegida.
Mário Azevedo diz que o OPI tem apoiado esse trabalho, fornecendo materiais para campo e colaborando na construção do posto de vigilância e nas expedições realizadas pela equipe de proteção.
Ele afirmou que, por questões sanitárias, uma equipe da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) foi acionada, pois há preocupação de que o indígena tente retornar para sua comunidade ou que seus familiares saiam em sua busca, o que poderia expô-los a doenças.
"Essa questão sanitária é o que mais preocupa agora. A equipe da Sesai vai fazer a testagem de toda comunidade Bela Rosa, para gripe e Covid-19, e também vai tentar convencer, por meio de uma pessoa que possa interpretar e traduzir a língua desse indígena, para que ele possa ser vacinado para o caso dele voltar para os familiares, não fazer nenhum tipo de contaminação. Esse agora é o maior risco", afirmou o indigenista OPI, Mário Azevedo.
Região ameaçada
A área de Mamoriá Grande, além de abrigar grupos de indígenas isolados, tem aproximadamente 20% de sua extensão sobreposta à Resex do Médio Purus. Segundo o indigenista Mário Azevedo, a principal ameaça à área atualmente vem da economia ilegal baseada na pesca e na caça de quelônios e peixes. No interior da Resex, essa prática já ocorre há décadas, mas foi impactada pela presença da Funai após a confirmação do registro de grupos isolados.
Desde então, pessoas que lucravam com essas atividades têm tentado desacreditar o trabalho da Funai, alegando que o órgão está inventando a existência dos indígenas isolados. Com a recente aparição do indígena na comunidade, vídeos dele começaram a circular na região, intensificando as narrativas negacionistas.
"Estão falando que inventaram e que na verdade é um indígena de um outro povo, que foi treinado para fazer o que ele está fazendo, que ele não é isolado, que não existe isso, que ele está muito manso para um isolado. São várias falas racistas e que preocupam, principalmente localmente, porque a gente sabe que são falas feitas justamente pelas pessoas que ganhariam algo com o genocídio desse povo", declarou.
Outras ameaças à região incluem ainda a especulação fundiária e a falta de respaldo legal para a fiscalização. Antes da publicação da portaria de restrição de uso, a Funai não tinha amparo jurídico para realizar ações de fiscalização adequadas no território, o que ampliava a vulnerabilidade da área.
https://amazoniareal.com.br/indigena-isolado-faz-contato-com-ribeirinhos-no-sul-do-amazonas/
PIB:Juruá/Jutaí/Purus
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