Capa: Os sobreviventes
Joel Pizzini descobre, em 500 almas, o que foi feito dos índios guatós
Cultura viva
Em 500 almas, Joel Pizzini encontra os poucos sobreviventes dos Guatós
Ricardo Daehn
Da equipe do Correio
Um grande paradoxo - o antropólogo Darcy Ribeiro, reconhecido defensor de minorias, haver decretado o desaparecimento da tribo guató, apoiado em relatórios do Serviço de Proteção ao índio (SPI) - sempre relutou em se acomodar na cabeça do cineasta Joel Pizzini. Entrosado desde os 12 anos com o imaginário indígena, Pizzini reforça que com o contato elaborou sua "mitologia afetiva'. jornalista "de formação, no passado, ele expunha arbitrariedades em tomo de índios e "ecoava o que não chegava às pessoas". No longa de estréia, 500 almas, que abre hoje a mostra competitiva, Joel segue dando vazão à denúncia, mas ancorado numa subjetividade que reclama uma visão "etnopoética
Preparado para filmar o silêncio-"a cultura estava adormecida, e a primeira idéia era de pessoas-fantasmas, atoladas na imobilidade pelo sentimento de ausência' - Joel atravessou a "realidade aparente", à caça de contato "mais íntimo" com a realidade. "0 Glauber (Rocha) dizia que mais importante do que o tema é o método", explica o diretor, envolvido com o projeto desde o começo dos anos 90. No filme, por exemplo, deu carta branca para incorporar ficção com o "narrador-atuante" Paulo José.
"0 gênero documentário é uma convenção técnica. A realidade é misteriosa e não realista. Parti de uma pesquisa rigorosa, com consultoria do arqueólogo Jorge Eremites de Oliveira (autor de Guatós: Os argonautas do Pantanal) e da lingüista Adair Palácio, mas proponho ruptura do convencional. Como o cinema permite o desenvolvimento do potencial da linguagem, tentei ser ousado no conteúdo e na forma. Como dizia Jean-Luc Godard, o melhor filme de ficção é o que parece um documentário, e.o melhor documentário é aquele que lembra a ficção", conta Pizzini.
Etnia de existência ignorada na década de 60, a guató foi objeto de estudo da missionária Ada Gambarotto que, nos anos 70, esbarrou em trançado de palha guató na Casa do Artesão (Corumbá). Ada serviu de elo entre Pizzini e dona Josefina, uma das protagonistas do documentário.
500 almas, o título, remete a documento do século 19 que relata ao Império a existência dos guatós: "Vivem lá cerca de 500 almas", registrava. A despeito do massacre, o grupo "se manteve, numericamente, mas o prejuízo foi da aculturação que fez com que renegassem a própria condição. A multiplicação deles parece fenômeno de resistência', revela Pizzini.
De origem nômade, os guatós - que circulavam por Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, com a especulação em torno das terras - ficaram "espremidos", como aponta Joel Pizzini.'Até a década de 70, eram comuns relatos bárbaros de crimes contra índios. Tentei chegar à raiz do preconceito e, na minha tese, eles renegaram deliberadamente a condição de índios por ganharem uma visibilidade terrível. Passaram, então, a viver como ribeirinhos dispersos no Pantanal. Em geral, migraram para periferias de Cácere, Corumbá e Ipoconé. Daí, no recenseamento, não terem encontrado aldeias", argumenta o cineasta.
Os guatós ainda se propuseram reintegrar-se à cultura numa "terra mítica', a Ilha Insua (fronteiriça à Bolívia). "Agrupados, eles foram trabalhar numa fazenda. Quem se recusava era expulso. Veio daí a relação conflitante com a sociedade: como sobreviver num sistema tão dificultoso?"
Driblando o preconceito até entre os remanescentes, o diretor percorreu a trilha do "artista-anárquico", pela qual se identificou com traços dos índios. Engana-se quem espera circunspecção. "São anarquistas, que desprezam hierarquia e trazem cacique figurativo", brinca Pizzini. Ele conclui, com satisfação indescritível: "São recatados, ainda que performáticos - respondiam ao que se esperava ouvir. Entendi que, ao ligar a câmera, eles se sentiram valorizados e se manifestaram".
CB, 24/11/2004, p. 1, 6 (37o. Festival de Brasília do cinema brasileiro)
Produção Cultural:Cinema, TV, Vídeo
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