Índios no poder

Isto É, Brasil, p.76-77 - 27/04/2005
Índios no poder
Aldeia fundada em 1971, palco de várias tragédias, é o primeiro município do Brasil governado por indígenas
Alan Rodrigues - São João das Missões (MG)

O ano é 1987. O mês, fevereiro. O local, nação indígena Xacriabá, terra seca no norte de Minas Gerais. Às 2h da madrugada do dia 12, pistoleiros invadem a aldeia Sapé, matam três índios e ferem outro tanto. A chacina, encomendada por fazendeiros locais, elevava para nove o número de índios mortos naquele período. O palco da tragédia é a casa do cacique Rosalino Xacriabá. Nela, José Nunes, um kuhinan - criança, na língua local - de dez anos, é obrigado, com dois revólveres apontados para a cabeça, a arrastar um dos corpos fuzilados para fora do barraco. A cena da barbárie nunca mais sairia da cabeça daquela criança que teve um motivo a mais para tatuar essa imagem na mente. O corpo que José arrastara, como troféu para os criminosos, era o de seu próprio pai.
A notícia da tragédia correu mundo. O mandante do crime e os assassinos foram presos. Pela primeira vez na história do Brasil foram todos condenados à prisão pelo crime de genocídio. A vida seguiu seu rumo. A aldeia, fundada na margem esquerda do rio São Francisco em 1771 pelos padres jesuítas, fica a 800 quilômetros de Belo Horizonte. Nos últimos 234 anos perdeu muita terra, mas conquistou sua emancipação. Em 1997, passou a ser chamada de São João das Missões. Dezoito anos já se passaram entre a noite do massacre e os dias atuais.
O menino José ganhou corpo, idéias próprias e, assim como o pai, conquistou o poder. Virou uma espécie de cacique. Filiado ao PT, foi eleito prefeito para governar a cidade dos índios.
Alguns fatores diferenciam São João das Missões, que tem cerca de dez mil habitantes vivendo em 10.800 hectares de terra, dos outros 5.707 municípios brasileiros. O primeiro é que oito em cada dez moradores do município vivem dentro de uma reserva indígena que se espalha por 27 aldeias. O outro são os indicadores sociais. O lugarejo tem um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) - estudo que mede a qualidade de vida da população, baseado em indicadores de saúde, educação e renda - pior que o mais miserável país da América ou de países que vivem em guerra. Segundo o IBGE, o município tem um IDH de 0,36%, contra 0,46% do Haiti, ou 0,50% do Iraque. Metade das famílias da cidade vive com somente um quarto do salário mínimo. Esse é o verdadeiro abacaxi que o índio prefeito herdou dos homens brancos.

Cidade do não
Optando por uma mudança radical, os eleitores da antiga aldeia resolveram decretar todo o poder aos índios. Cinco dos nove vereadores da Câmara Municipal são lideranças indígenas. Na linha de frente dessa batalha, o Executivo dispõe de uma tropa de choque composta por quatro índios secretários escalados para tentar transformar a -cidade do não-, assim batizada porque não possui hospital nem maternidade e o único posto de gasolina fechou. Agência bancária ou escola de nível superior só são encontradas depois de se percorrerem 30 quilômetros de estrada de terra até o município vizinho. Biblioteca pública, então, nem pensar. A cidade nem sequer tem uma banda de música. Fartura mesmo só de fome. Muita fome.
Para tentar acabar com essa situação de miséria, índios e não-índios resolveram acender o cachimbo da paz. "Temos que nos unir para sair dessa", propõe Maria Zita (PDT), vereadora da oposição, moradora da aldeia Rancharia. Do padre ao pajé, o discurso é um só: a miséria tem que acabar. A penúria leva o prefeito José Nunes a admitir: "Não tenho como resolver esse problema sem ajuda externa; alguém tem que nos escutar", desabafa. O desespero do prefeito tem razão de ser. Segundo o IBGE, 1.056 famílias vivem abaixo da linha de pobreza. As três refeições diárias tão prometidas pelo presidente Lula são um sonho distante. "Nossa tribo está sendo exterminada", analisa Jonesvan Pereira, 21 anos, professor e vereador. Financeiramente o município sobrevive, ou quase, dos R$ 300 mil aportados pelo Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Enquanto isso, cerca de 700 famílias contam com R$ 95 mensais vindos de programas sociais do governo federal.
"O governo precisa jogar um olhar diferenciado para as populações indígenas", sentencia o prefeito. "A maioria desses programas governamentais, como o Bolsa-Escola, por exemplo, atende no máximo três pessoas por família. Os índios não utilizam métodos anticonceptivos: cada família tem, em média, seis filhos", afirma Maria Eunice, assistente social do município. "Precisamos muito mais do que feijão", protesta o padre José das Mercês. Afinal, nos últimos dez meses, o único alimento recebido pela comunidade foi feijão: 30 toneladas.
Uma coisa é certa, essas doações não têm conseguido aplacar a fome local. Kaiporá Xacriabá, 54 anos, a mais antiga liderança indígena, teve 17 filhos, seis dos quais morreram. "Muitos se foram por morte morrida. Outros por fraqueza", garante. Otila Oliveira dos Santos, 35 anos, mora na aldeia Embaúba, tem oito filhos, recebe um salário mínimo de sua pensão de viuvez e R$ 95 do Bolsa-Família. É assim que dá o de comer às nove bocas. "Aqui é só feijão, no almoço e no jantar", lamenta.

Isto É, 27/04/2005, p. 76-77
PIB:Leste

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