'O silencio e o oculto dão asas às palavras'

O Globo, Prosa & Verso, p. 3 - 24/04/2004
'O silencio e o oculto dão asas às palavras'
Na tradição indígena, as crianças das aldeias ainda são seres encantados que vivem a passagem entre os mundos

"O que escrevo precisa ser lido com o coração. É aí que moram os significados ocultos das palavras", afirma o escritor de livros infanto-juvenis Daniel Munduruku, autor de "Meu Vô Apolinário", obra premiada pela Unesco em 2003. Tendo retornado, sábado passado, da Feira do Livro de Bolonha, onde teve a oportunidade de mostrar ao mundo ricos aspectos da diversidade cultural brasileira, o escritor de origem indígena se confessa preocupado, atualmente, com o futuro das crianças que vivem nas aldeias de seu povo. Se dentro da tradição, as crianças ainda são seres encantados, muitas delas, hoje, estão abandonando a roda em torno do fogo, onde os mais velhos contam as narrativas heróicas, pelo fogo quadrado da televisão.

NO LIVRO "COISAS DE ÍNDIO" (ED. CALLIS), VOCÊ ESCREVE: "PARA ALGUNS ÍNDIOS A PALAVRA É COMO UM PÁSSARO QUE QUANDO É LIBERTADO NINGUÉM MAIS CONSEGUE PRENDER". O QUE MAIS DÁ ASAS ÀS PALAVRAS?

DANIEL MUNDURUKU: O povo indígena é essencialmente de tradição oral. A palavra é utilizada para ensinar, contar e cantar os feitos maravilhosos dos heróis ancestrais. O passado, o presente e o futuro estão centralizados numa única palavra. Mas palavra não é apenas o som que emitimos e que nos vangloriamos de sermos possuidores. Palavras também são os sons da natureza e do silêncio. O que calamos. Acho que os silêncios que faço em meus textos são mais eloqüentes que as palavras que escrevo. Neles moram o encantamento, pois trazem ao universo do excesso de palavras da cidade o que é vivo no coração da floresta. A palavra silenciosa dá outras asas às palavras.

As palavras, para você, têm um significado oculto. O que é essencial para decifrá-lo?

MUNDURUKU: Escrevo o que me é ditado pelos meus ancestrais. É, sinto-me um pouco conduzido pelas palavras que eles vão me passando. Sei que parece estranho para as pessoas quando lhes confidencio isso, mas também não me importo muito, porque há um saber que vai além da compreensão delas. Nesse sentido, as crianças são muito mais sensíveis e normalmente chegam ao cerne do que desejo passar quando escrevo. Na tradição de minha gente, as crianças são ainda seres encantados vivendo a passagem entre os mundos. A elas é dada a participação em todas as ações de nossa comunidade para que se acostumem ao universo que viverão, sem que deixem de acreditar no mundo do qual saíram. Isso também vale para as crianças da cidade. Infelizmente as pessoas adultas das cidades não conseguem compreender esse saber e acabam fazendo as crianças se enterrarem em atividades que não lhes servirão para nada. O que escrevo precisa ser lido com o coração. É aí que moram os significados e sentidos ocultos das palavras.

Há sempre um sentido oculto a ser encontrado?

MUNDURUKU: No mundo do qual venho não precisamos procurar nada. As coisas existem por si mesmas e têm vida e alma próprias. Precisamos apenas saber conviver com elas de tal modo que nossa vida e a delas tenham sentido. A isso tenho chamado de saber circular ou holístico. Não somos donos da teia da vida, apenas de um dos seus fios. Quem busca significado nas coisas entra em crise. Basta olhar para a Civilização Ocidental.

Seu livro "Meu Vô Apolinário" (Studio Nobel) recebeu Menção Honrosa no Prêmio de Literatura para Crianças e Jovens de 2003 da UNESCO. Para você, o que foi mais significativo nessa premiação?

MUNDURUKU: Foi significativo constatar que a mensagem do livro é universal. E verificar que o saber do meu povo é capaz de atingir o espírito das pessoas de todo o mundo. Foi comovente, para mim, o mundo ter reconhecido isso.

Você acaba de voltar da Feira do Livro de Bolonha. Como foi a experiência?

MUNDURUKU: Fui à Itália como autor da editora Global e com o apoio da Fundação Nacional do Livro Infanto Juvenil (FNLIJ). Considero-me um autor recente e o fato de a FNLIJ reconhecer o meu esforço na divulgação da cultura indígena brasileira me encheu de entusiasmo. O reconhecimento é sempre uma boa alavanca para novos saltos e acho que isso tenho tido graças ao incentivo da FNLIJ. Já a Global tem sido uma bela parceira. Temos muitos projetos pela frente. Um deles é a organização de uma coleção de autores indígenas voltada para universitários. Será uma reunião de teses e pensamentos intelectuais dos povos indígenas. Minha ida a Bolonha, por outro lado, foi uma boa oportunidade para mostrar que o Brasil é formado por muitos povos e que essa sociodiversidade nativa é rica em sabedoria, criatividade, desejos, projetos, livros. E que temos orgulho de fazer parte desta grande nação.

A FNLIJ atendeu a um pedido da Associação de Leitura do Brasil para doar livros infantis a escolas indígenas. Como vê essa iniciativa?

MUNDURUKU: Os povos indígenas vivem situações delicadas quanto ao contato com a sociedade brasileira. Algumas áreas ficam isoladas e outras enfrentam problemas da urbanização, que deterioram a qualidade de vida de muitas aldeias. Quando penso na minha própria experiência na cidade e na aldeia, me angustio com o futuro que aguarda nossas crianças. Elas estão crescendo sem os referenciais de seus antepassados. Em muitas aldeias, os velhos já não conseguem chamar seus netos para sentarem ao redor do fogo e lhes contar as histórias de antigamente. Estão perdendo a vez para o fogo quadrado da televisão. E isso é tão terrível quanto traduzir a Bíblia para a língua indígena e considerá-la leitura escolar! Sei que é prova de boa vontade doar livros infantis e juvenis para as aldeias, mas a questão é saber quem vai lê-los. Conheço dezenas de experiências fracassadas. Livro é corpo estranho nas aldeias se for doado sem a preocupação de formar os leitores. Mas acredito que deve ser uma preocupação da FNLIJ e da ALB propor políticas de leituras para os povos indígenas. Isso tornará mais significativa a doação e trará mais esperança quanto ao futuro de nossas crianças que terão, nos livros, a possibilidade de recuperar a consciência ancestral.

Considera importante para a formação de leitores o Salão do Livro para Crianças e Jovens realizado no MAM, entre setembro e outubro?

MUNDURUKU: Já dizia um antigo sábio: "É lendo que se aprende a ler". O Brasil precisa aprender a ler e eu acho que o Salão é como um grande livro em que o país vai aprender a ler. O Salão é de extrema importância para a formação de leitores, porque proporciona o contato direto do nosso povo com a leitura e não apenas com a leitura formal do livro, mas com os silêncios que existem entre os estandes que separam um livro do outro.

Mais do que eventos literários e bibliotecas com belos acervos, precisamos capacitar os profissionais que trabalham nesses espaços. As comunidades indígenas têm participado desse tipo de iniciativa?

MUNDURUKU: Infelizmente as comunidades indígenas não têm sido lembradas para muita coisa a não ser apresentações culturais. Recentemente estive em uma aldeia de um povo em Tocantins. Eles acabaram de ganhar uma escola maravilhosa em moldes tradicionais. Surpresa maior tive quando fui à sala dos professores e vi que tinham chegado mais de 300 títulos para os docentes. Fiquei boquiaberto. E ainda mais quando notei que os professores nem olharam para esses títulos. Folheei alguns e vi que eram todos muito técnicos, sem relação direta com a vida deles. Troquei todos aqueles livros por cachos de banana.

Você costuma dizer que a realidade indígena é muito rica, mas muito pouco compreendida. Em que aspectos essa incompreensão é perigosa na formação das crianças?

MUNDURUKU: O risco é o da generalização. Ensina-se muito mal às crianças da cidade, especialmente a temática indígena. Acabam achando que os índios são todos iguais e que não existe uma grande diversidade cultural. À medida que essa diversidade cultural e lingüística for sendo compreendida, as pessoas entenderão mais as razões de nossa gente e poderão propor coisas mais dinâmicas e respeitosas. As crianças são importantes na continuação de uma mentalidade. O que aprendem utilizarão na administração da sociedade. Isso me deixa temeroso.

Você diz que, quando menino, sentia raiva de ser índio por causa do preconceito dos outros garotos no colégio. A literatura infantil vem mudando essa visão estereotipada em relação aos índios nas escolas e famílias brasileiras?

MUNDURUKU: A literatura é muito importante nessa tarefa de introjetar valores nas pessoas. Do mesmo jeito que ela fez no passado, criando estereótipos, pode fazer no presente, criando uma imagem positiva na mente das crianças e dos jovens. E isso ela tem feito, é preciso que se diga. Há 30 anos o que líamos era vexatório. Hoje, guardadas raras exceções, os textos produzidos sobre os povos indígenas são muito melhores. E mais interessante ainda é o fato de alguns indígenas estarem escrevendo suas histórias, inaugurando uma literatura nativa brasileira.

Em "Meu Vô Apolinário" você fala sobre a paixão de buscar histórias no fundo de cada um: "Histórias moram dentro da gente, lá no fundo do coração". O que mais o atrai ao construir uma história?

MUNDURUKU: Gosto de histórias biográficas, porque trazem a memória à tona. Nelas, as personagens falam de si mesmas enquanto falam para quem as lê. Acho que, no fundo, todos os meus livros são biográficos. Eles traçam o perfil de uma memória coletiva contada por todo um povo.

MÁRCIO VASSALO é escritor

O Globo, 24/04/2004, Prosa & Verso, p. 3
PIB:Tapajós/Madeira

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