A Crítica, Cidades, p. C1 e C3 - 09/01/2004
Reféns são libertados
Policia Federal intervém no quarto dia de confronto
Sete estudantes amazonenses e três padres foram libertados pelos índios Macuxis depois de acordo com a PF
Gerson Severo Dantas
Os sete estudantes amazonenses feitos reféns por índios Macuxi na missão católica São José do Surumu, em Vila Pereira, município de Pacaraima (RR), foram libertados e chegaram a Boa Vista quarta-feira à noite. Eles estão na sede do Instituto Consolata de Roraima e devem seguir hoje para Manaus. Ontem também os Macuxis da aldeia Contão fizeram um acordo com agentes da Polícia Federal e libertaram os padres Ronildo de França, que é manauense, Cesar Avellaneda e o irmão João Carlos Martinez. Um homem identificado como José Alberto Teixeira morreu quando tentava entrar penetrar nas estradas bloqueadas de Roraima, proveniente do Amazonas, para tratar de leucemia.
0 seqüestro dos amazonenses e dos religiosos faz parte de uma série de protestos organizados por índios e rizicultores (plantadores de arroz) contra o anúncio da homologação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol, uma área de 1,78 milhão de hectares no noroeste do Estado. A homologação vai garantir terra para aproximadamente 15 mil índios das etnias Macuxi, Uapixanas, Ingaricós e Taurepangs, mas causará o desaparecimento do município de Uiramutã, que tem mais de cinco mil habitantes, quase mil deles não-índios. Os três religiosos chegaram ao aeroporto de Boa Vista por volta de 18h e foram recepcionados pelos índios rebelados, que ameaçavam tomá-los novamente como refém.
Protegidos pela Polícia Federal e a Polícia Mi1itar, Ronildo, Avellaneda e Martinez foram levados ao Instituto Médico Legal para fazer exame de corpo e de delito. Por volta de 19h eles seguiram para a sede do Instituto Consolata, onde emocionados foram recebidos pelos estudantes amazonenses e outros religiosos da ordem. Houve uma pequena festa organizada pelos religiosos e os amazonenses, que ainda não se recuperaram das cinco horas de terror que passaram na madrugada de terça-feira. "Agora estou tranqüilo, mas não vou esquecer aquelas horas de tensão e medo", conta Andreza Resende, 21, que junto de Glaydson Lopes, 25, Dulcinéia Souza, 21, Maik Anderson, 20, Gilberto Rodrigues, 21, Anderson Vasconcelos, 18, e Narilete da Silva, 24, pertencem a um clube de jovens da paróquia de Santa Lúzia, no bairro de mesmo nome, Zona Sul de Manaus. A viagem do grupo foi planejada durante três anos e embora tenha sido encerrada antes do prazo previsto, dia 18, eles contam que valeu a pena. "Viemos para conhecer o trabalho dos missionários e acabamos vendo, sentindo na pele, a dimensão política da questão indígena", disse Glaydson, estudante de pedagogia das Faculdades Objetivo.
Imbuídos do espírito dos missionários, os sete amazonenses passaram o dia de ontem elaborando um relatório sobre o episódio, em que ficaram por cerca de cinco horas nas mãos dos Macuxis de Contão, para fundamentar uma ação judicial que eles ainda não sabem contra quem será.
Um coisa, contudo, eles afirmam: faltou apoio do Governo de Roraima. "Até por uma questão de cortesia eles deveriam vir aqui para saber como estamos, se precisamos de alguma coisa. Nós éramos visitantes e eles não fizeram nada", diz Andreza após fazer uma avaliação crítica dos políticos do Estado.
'Será que vamos morrer?'
Anderson Vasconcelos
Essa era a pergunta que não calava em nossos pensamentos quando a invasão da missão São José de Surimu começou. Sem ação, afinal não queríamos conflitos posteriores, permanecemos como reféns
durante horas. Índios e responsáveis não-índios, num ato deprimente, tomaram a missão: destruíram portas e janelas, saquearam alimentos e dinheiro, ameaçavam e debochavam de nossas caras. E o que é mais intrigante, escreviam na parede: "Queremos paz?. Assim, eles podem acabar com tudo que nos cerca, menos com a nossa vontade de lutar".
Anderson Vasconcelos, Autor é estudante do segundo período do curso de Comunicação Social, habilitação jornalismo, da Universidade Federal do Amazonas. Escreveu este texto à pedido de A CRÍTICA exprimindo o sentimento dos sete amazonenses presos por índios Macuxis em Surumu e que pertencem ao clube de jovens da paróquia de Santa Luzia.
Prédio do Incra é desocupado
Ontem, agricultores e assentados que invadiram a sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) saíram do prédio após uma manhã inteira de negociação com agentes federais que foram cumprir ordem de desocupação de prédio público expedida pelo juiz Federal Helder Girão.
A saída dos quase 200 manifestantes foi negociada entre o advogado deles, Luiz Valdemar Albrecht, que veio do Rio Grande do Sul só para tratar do assunto, e o superintendente em Exercício da Polícia Federal, Ianê Rodrigues, que solicitou apoio da Polícia Militar para cumprir o mandado de desocupação. Ianê dirige um "Grupo de Gerenciamento de Crise" montado por autoridades federais e estaduais visando manter a ordem pública no Estado. Ele contou que as prioridades estabelecidas pelo grupo para ontem foram todas cumpridas. "A prioridade um era desocupar o Incra, a dois era libertar os reféns. Tudo isso já foi cumprido", revelou. "As próximas ações são a desobstrução das estradas federais e estaduais e, por último, a desocupação do ,prédio da Fundação Nacional do Índio". A desocupação da Funai foi, conforme uma fonte em Contão, a moeda de troca que possibilitou o acordo que culminou com a libertação dos religiosos do Instituto Consolata.
Após a libertação dos reféns, a desocupação do Incra e a reabertura do comércio, que fechou na quarta-feira em apoio aos índios e rizicultores, os manifestantes partiram para outros tipos de protestos. Após manterem os religiosos ilhados no IML durante uma hora eles saíram pelas ruas de Boa Vista numa passeata que também visava chamar atenção das autoridades federais para a necessidade de negociação. "Vamos continuar mobilizados e buscando outras formas de protesto", explicou a prefeita de Uiramutã, Florany Mota, que curiosamente é do Partido dos Trabalhadores. "Será mesmo que o presidente Lula vai querer acabar com o município que é governado pelo PT há três anos", brinca Florany,. lembrando que a vila de Uiramutã foi fundada em 1911.
Índios fecham acesso ao aeroporto
Praça das águas foi bloqueada ontem À noite pelos indigenas
Gerson Severo Dantas
Os índios e agricultores fecharam a avenida Praça das Águas, principal via de acesso ao aeroporto da cidade. 0 objetivo deles era impedir que as pessoas saíssem ou entrassem em Roraima. Mas Polícia Militar fez um atalho para permitir a saída do aeroporto. 0 Estado de Roraima é um dos mais pobres do Brasil, mas está assentado em uma das terras mais ricas do mundo. 0 solo, chamado de lavrado pelos 320 mil habitantes, é excelente para a pecuária e monoculturas como as de arroz e soja, A riqueza "dos vera", contudo, está debaixo da terra, onde existem vários tipos de minerais nobres, como ouro, diamante e pedras preciosas. Infelizmente, uma briga eterna entre diversos segmentos da sociedade local impede a exploração das riquezas e condena o povo a viver apenas sob a tutela do Estado, o principal empregador de Roraima.
A praga dos "Gafanhotos", que invadiu a folha de pagamento há sete anos e está sendo investigada pelo Ministério Público Federal (MPF), fez diversas vítimas e ainda deixou vestígios graves, pois desde o início do ano passado foram demitidos aproximadamente 20 mil funcionários públicos sem estabilidade. 0 Governo Estadual já fez concurso público para aparelhar o funcionalismo, mas até o momento poucos foram chamados. Sem os 20 mil funcionários, a economia sofreu um grande abalo.
0 setor industrial é incipiente e quase todo voltado para o apoio ao agronegócio, cuja principal cultura é o arroz e futuramente poderá ser a produção de celulose (matéria-prima do papel) extraída das novas plantações de acácias.
0 comércio é quase uma extensão do existente em Manaus, principal alvo das importações e exportações feitas pelo Estado. Manaus, inclusive, está para Boa Vista, como Miami, nos Estados Unidos, está para os novos ricos do Brasil. Os boavistenses compram carros em Manaus, se informam sobre moda, debatem e até estudam de olho no que está dando certo na capital do Amazonas, que em troca recebe boa ,parte da produção agrícola. "E uma relação de amor e parceria, um toma lá, da cá", diz o taxista Carlos de Moura, 60.
Com o asfaltamento da BR-174 o intercâmbio entre as duas cidades passou a ser maior. Os rizicultores (plantadores de arroz), por exemplo, vendem quase toda a produção para Manaus, que por sua vez repassa o excedente para Santarém, no Pará. Com a homologação da reserva indígena Raposa/Serra do Sol, a rizicultura será a atividade mais prejudicada, pois dos 15 mil hectares plantados, 7 mil estão em terras da Raposa/Serra do Sol. Estas plantações pertencem, principalmente aos agricultores Paulo Cesar Quartieiro, do arroz Acostumado, Nelson Itikawa, do arroz Itikawa, e Genor Faccio, do arroz Faccio.
Rizicultores patrocinam
Os três são acusados pelos religiosos do Instituto Consolada, pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR) e pela Funai de serem os "patrocinadores" das manifestações que culminaram com a invasão da Funai, do Incra, o fechamento das estradas federais e estaduais e os seqüestres de três religiosos por Macuxis da comunidade Contão, em Pacaraima. "Eles estão pagando e garantindo a infra-estrutura para esse protesto, feito por índios manipulados por eles", diz o administrador em Exercício da Funai em Boa Vista, Gilberto Reginaldo Tavares. Livre da ameaça dos Macuxis de Contão, o estudante Maik Anderson, 20, promete um protesto inusitado contra os "arrozeiros". "Nunca mais entrará em nossas casas o arros Faccio e o Acostumado e ainda vou falar mal deles para os amigos", promete Maik. Segundo Tavares, o barulho todo causado pelos rizicultores esconde o interesse econômico de apenas seis grandes plantadores que são posseiros em Raposa/Serra do Sol,área que segundo a Funai está demarcada desde 1998 em áreas contínuas, onde não-índios não podem entrar, viver ou trabalhar. 0 outro lado diz que aceita e quer a homologação das terras indígenas, mas defende que a área não seja contínua, dado que existem estradas e municípios legalmente constituídos dentro delas. "Eles querem uma área de 1,78 milhão de hectares, nós e o governo só estamos pedindo 250 mil hectares. Isso não é razoável?", argumenta o advogado Luiz Valdemar Albrecht, trazido do Rio Grande do Sul para defender os agricultores.
A homologação em terras descontínuas também é defendida pelo tuxaua da comunidade Macuxi de Santa Creuza, em Uiramutã, Pedro Celson da Silva, que integra o conselho de lideranças indígenas que comanda a invasão do prédio da Funai. Pedro diz que a decisão de invadir é dele e nega que os produtores de arroz estejam manipulando os índios contrários à homologação. "Nós estamos aqui por que a decisão do governo é prejudicial", diz. Na guerra de informações entre os dois lados os números acabam se invertendo.
Polícia Federal aguarda pedido
Eloísa Vasconcelos
A Polícia Federal (PF) do Amazonas, por meio de sua assessoria, disse que até ontem de manhã ainda não havia recebido pedido de reforço policial da mesma instituição em Roraima para ajudar a solucionar o protesto de agricultores e índios rebelados em Boa Vista. A assessora de comunicação Cristina Amazonas esclareceu que esse pedido de reforço é solicitado à PF, em Brasília, e que é por lá que um efetivo vizinho àquele Estado é designado para a ação. Por enquanto, segundo a assessora, a PF-AM encontra-se apenas acompanhando o desenrolar do conflito por meio dos noticiários. Os índios iniciaram o protesto na terça-feira, revoltados com o anúncio da homologação das terras pelo Ministro da justiça, Márcio Thomaz Bastos. Eles dizem que essa decisão irá causar prejuízos a eles, implicando na expulsão dos habitantes e no fechamento dos municípios de Uiramutã e Pacaraima, cada um com sete mil habitantes. Os dois grupos condicionam a solução do problema à presença de autoridades federais para que sejam ouvidos e se reposicionem. 0 movimento se intensificou ontem com três frentes de protesto. Além dos prédios da Funai e do Incra, onde se concentram 200 índios, agricultores e índios se escastelam nos trechos das estradas federais e estaduais e em um dos postos de interdição, na BR-401 que liga Boa Vista ao município de Bonfim e Georgetown na Guiana onde em entrevista, o plantador de arroz, Gennor Faccio, enfatizou que o movimento não estava mais restrito aos plantadores de arroz, mas a toda a classe produtiva de Roraima, madeireiros, pecuaristas e transportadores.
Cronologia da crise
1911 - A União cria a Vila de Uiramutã, a três quilômetros da fronteira com a Guiana.
1920 - E criada a Vila de BVB, que posteriormente vai dar origem ao município de Pacaraima
1948 - Se instala em Roraima o Instituto Missionário da Consolata, ordem religiosa originária de Turim, na Itália e criada há mais de cem anos.
1964 a 1985 - Governos do ciclo da Ditadura Militar fazem as primeiras demarcações e homologações de terras indígenas em Roraima. Era reservas em áreas descontínuas, onde a convivência entre índios e não-índios era permitida.
1978 - Indígenas de diversas etnias celebram um pacto visando unificar a luta pela demarcação de grandes áreas indígenas. O foco principal da luta passou a ser a a homologação das terras Ianomâmis, com mais de 9 milhões de hectares, e a Raposa/Serra do Sol, com 1,78 milhão de hectares
1988 - A Constituição "Cidadã" garante o direitos dos índios a terra de seus ancestrais e estabelece o prazo de cinco anos para que o Estado elabore estudos que fundamentarão a demarcação e a homologação das terras
1989 - Fernando Collor de Mello é eleito presidente e passa a ser pressionado por ambientalistas e organizações não-governamentais para demarcar e homologar a reserva indígena dos Ianomâmis, em territórios dos Estados do Amazonas e Roraima. A pressão dos ambientalistas surtiu efeito porque o Brasil sediaria em 1992 a 2o Conferência das Nações Unidas Para o Meio Ambiente, a ECO-92, no Rio de Janeiro, e o presidente queria chegar ao encontro com grande apoio das ONGs.
1992 - Com aplauso de ambientalistas, religiosos e ONGs, é homologada a reserva dos Ianomâmis.
Garimpeiros, então responsáveis pela principal atividade econômica do Estado, protestam.
1993 - Estudos antropológicos estabelecem os limites da Raposa/Serra do Sol
1995 - É criada em terras contínuas a reserva indígena de São Marcos.
1996 - Após a homologação de São Marcos, o Estado cria ilegalmente o município de Pacaraima, onde antes existia a vila de BV-8
1996 - É criado o município de Uiramutã
1998 - O Ministro da justiça Renan Calheiros reconhece por meio de portaria ministerial as terras da Raposa/Serra do Sol como sendo áreas indígenas.
2002 - O governo Lula cria uma grupo interministerial para analisar a situação indígena e fundiária da Raposa/Serra do Sol. Esse grupo tem até 31 de janeiro para entregar um relatório.
2002 - Em entrevista concedida em meados de dezembro o Ministro da justiça, Márcio Thomaz Bastos, declara que o presidente Lula homologará até o final de janeiro ás terras da Raposa/Serra do Sol.
2003 - Indígenas ligados a quatro organizações mantém sete estudantes amazonenses presos por cinco horas na missão São José do Surimu e seqüestram três religiosos.
- Agricultores que plantam arroz em terras indígenas fecham as estradas federais BR- 174 e BR-401 e deixam mais de duzentos amazonenses que estavam indo ou vindo de Margarita parados no meio das estradas.
- Agricultores financiados por rizicultores invadem a sede do Incra. Indígenas invadem a sede da Funai.
A Crítica, 09/01/2004, Cidades, p. C1, C3
PIB:Roraima/Lavrado
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