Uma aldeia de guaranis em pleno município
Índios são da mesma etnia que foi mão-de-obra escrava no século XVI
Na represa margeada pela mata, curumins nadam despreocupados. Mulheres cozinham em fogueiras, em frente a casas de pau-a-pique. Conversam na língua nativa. No ar da casa de oração, permanece o cheiro de fumaça das práticas religiosas da noite anterior. À primeira vista, parece uma tribo amazônica. Mas estamos a apenas 55 quilômetros do marco zero de São Paulo, ainda dentro dos limites da capital paulista. Em Parelheiros, na Zona Sul, a aldeia guarani de Krukutu conserva um pedaço da história mais remota da cidade.
Cerca de 1.200 indígenas habitam hoje três aldeias em São Paulo: Barragem, Krukutu e Jaraguá. São do mesmo povo que serviu de mão-de-obra escrava nos dois primeiros séculos da vila de São Paulo de Piratininga. Os atuais guaranis começaram a se fixar no século passado, mas seus ancestrais já usavam a região como rota de passagem antes de os primeiros jesuítas pisarem no planalto de Piratininga.
Originalmente, o povo encontrado no planalto há 450 anos foi o tupi, liderado pelo cacique Tibiriçá. Como se aprende na escola, Tibiriçá ajudou os jesuítas e colonos a se estabelecer e resistir aos seguidos ataques de índios hostis. Mas os tupis desapareceram por completo, seja porque foram incorporados à sociedade colonial ou por terem sido dizimados pelos bacamartes bandeirantes ou por moléstias. Para repovoar o planalto, os primeiros paulistas foram buscar os guaranis e outros "gentios da terra", que vieram até de aldeias do Paraguai.
Existe uma história contínua de migrações e reformulação do perfil étnico da região. Tibiriçá é parte da história, mas a presença indígena é algo contínuo. Não está apenas no passado. "E mesmo o passado tem de ser pensado de outra maneira", afirma o antropólogo John Manuel Monteiro, da Unicamp, autor do livro "Negros da terra", sobre o papel dos índios e bandeirantes da origem de São Paulo.
Uma presença com forte significado
Como, naquelas primeiras décadas da ocupação do planalto paulista, as vilas não tinham recursos para comprar escravos africanos, os povos apresados no sertão representaram para São Paulo o que a mão-de-obra negra significou para o resto do país. Este traço de indianidade na formação da sociedade paulista torna-se marcante e viria a gerar Macunaíma, o herói criado pelo escritor paulista Mário de Andrade, que retrata um indígena de mil caras que se juntam e formam o próprio povo brasileiro.
Embora reconheça que os guaranis não são remanescentes do povo original, até porque eles têm uma tradição antiga de movimentos nômades, John Monteiro afirma que a presença deste povo, hoje, em São Paulo, tem um significado simbólico poderoso: "É preciso lembrar que a Grande São Paulo e os aldeamentos de Guarulhos e São Miguel foram repovoados por guaranis nos séculos XVI e XVII, alguns escravos e outros trazidos para ocupar aldeias".
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Cronistas dos séculos XVI e XVII denominavam "guaranis" os grupos de mesma língua encontrados desde a costa atlântica até o Paraguai. Era um povo em constante deslocamento, principalmente do sertão em direção ao litoral, buscando a terra perfeita, o paraíso - onde só se chegava depois de se atravessar a "grande água".
As três aldeias guaranis de Barragem e Krukutu estão na área de proteção ambiental Capivari-Mono, que responde por um sexto do município de São Paulo, às margens da represa Billings. Era uma área de passagem, ligando o Sul ao litoral, até que os índios se deram conta, nos anos 50, de que não havia mais para onde ir. Resolveram, então, se fixar na área.
Barragem é a maior em população: são cerca de 700 habitantes, sendo 119 crianças de 4 a 6 anos. A escola local ensina em guarani na primeira e segunda séries do ensino fundamental. Para sobreviver, cada família planta onde há espaço (milho, batata-doce, feijão, mandioca e banana), cria animais e produz artesanato. Todas as tardes, os integrantes da tribo se reúnem para cantar e dançar na casa de orações. O ano novo é comemorado em setembro.
Porém, como as demais aldeias, Barragem está pequena para a sua população. Ocupa apenas 26 hectares e reivindica a ampliação da área. É a mesma situação da aldeia Krukutu, próxima, onde moram 160 pessoas. Marcos Tupã, o cacique, reclama que a cidade cresceu e cercou a aldeia.
Esses casos mostram que, nos 450 anos de São Paulo, os índios ainda tentam acertar suas diferenças com os ocupantes posteriores. No total, são 23 aldeias lutando pela demarcação em todo o estado.
A Funai diz que, em 2002, foi criado um grupo para estudar a ampliação da área de Barragem, Krukutu e Jaraguá - que, apesar das dificuldades, ainda vivem em melhores condições que os indígenas do povo pancararu, originário de Pernambuco. Cerca de 1.200 deles moram na favela do Real Parque, na Zona Sul de São Paulo. Já perderam a língua-mãe, não têm terra e quase não exibem os traços físicos característicos dos indígenas. Na capital paulista, onde os primeiros chegaram em paus-de-arara nos anos 50, muitos ajudaram a construir um deus de pedra do homem branco: o estádio do Morumbi.
Em Pernambuco, os pancararus formam o segundo maior povo indígena, com oito mil integrantes, e espalham-se por um território de 8.100 hectares em três municípios do sertão. Vivem em situação de penúria, tendo a agricultura como praticamente a única alternativa de subsistência. Os pancararus produzem algum artesanato, mas normalmente para o consumo doméstico.
Prejudicados pelas secas periódicas, pela construção de hidroelétricas e pelo crescimento das famílias, muitos pancararus migraram para São Paulo, onde praticamente formaram uma aldeia na favela Real Parque.
Maria Luíza dos Santos faz parte desse povo. Há 25 anos em São Paulo, não esqueceu completamente a tradição de sua tribo. No barraco apertado onde mora com mais 11 parentes, no Real Parque, ela conserva na prateleira mais alta da estante um praiá. Parece uma peça de artesanato em palha, mas representa uma divindade. Para os pancararus, os praiás formam um tipo de sociedade secreta, na qual ninguém "pode saber" quem ocupa a vestimenta, mas que inspira e protege seus filhos.
O Globo, 25/01/2004, p. 7.
PIB:Sul
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