Ajuda que chega em boa hora

O Globo, Razão Social, p. 12-15 - 05/02/2007
Ajuda que chega em boa hora

Na Aldeia Jitó, município de Jatobá, em Pernambuco, sertão brasileiro, no dia 25 de dezembro de 2006, nasceu Thiniá de Souza. Os cabelos escuros e lisos e a pele bem morena atestam: é uma índia Pankararu, como a mãe, Regina Maria de Souza, o pai e os três irmãos. Thiniá foi parida em casa, como manda a tradição de seu povo, auxiliada por Dora, uma parteira indígena, mas, se teve a cultura garantida através do projeto saúde & cultura Pankararu, que a ONG Saúde Sem Limites realiza com a ajuda da empresa PFIZER, não se pode dizer o mesmo sobre suas condições de sobrevivência. A casa tem três cômodos, chão de cimento, poucos móveis, uma televisão de 14 polegadas ligada o dia inteiro. E na geladeira velha havia apenas água para beber no dia 18 de Janeiro, quando Thiniá completou 20 dias.

Amélia Gonzalez

O pai de Thiniá engrossa a estatística dos índios de sua raça, que não conseguem emprego fora nem dentro da aldeia: as terras produtivas, dizem eles, estão nas mãos dos brancos. Assim, assistida por um lado, abandonada por outro, a indiazinha está no meio de um conflito iminente entre seu povo e os brancos pela posse das terras. São seis mil Pankararu, espalhados em 21 aldeias em cerca de oito mil hectares no meio do sertão. Deveriam ser 14 mil hectares, garantem. Há quase 20 anos eles esperam a Funai cumprir um decreto da Justiça e ressarcir os posseiros para que eles possam sair das terras indígenas.
Enquanto esperam, entre outras coisas, os índios procriam. E, até dois anos atrás, o processo de gestação e nascimento da etnia pankararu estava indo de mal a pior. Durante o estudo para fazer o relatório e apresentar o projeto à Pfizer, a Saúde sem Limites detectou alto índice de mortalidade infantil e a saúde precária das gestantes.
O vilões não eram só as más condições de higiene e a desnutrição da maioria das grávidas. Havia uma total falta de acesso à informação e ao exame pré-natal, ferramenta importante para acompanhar qualquer gravidez.
Foi assim que o projeto nasceu, em 2004. Custou à Pfizer R$ 600 mil/ano (a empresa não divulga quanto esse valor representa, em porcentagem, do total de seu lucro), já beneficiou um sem-número de grávidas, e deverá se prolongar ainda por mais oito meses, tempo necessário para ajustar a transição do programa para a Funasa, parceira de todas as horas. O importante é não criar dependência, alerta a cientista social Luzia Albuquerque, coordenadora regional da SSL. E dar aos índios mais do que recursos de saúde: o controle social. - Queremos melhorar as condições do parto nas aldeias. E o controle social é que vai garantir isso de fato, por isso além de ensinar as técnicas procuramos fazer um trabalho de cidadania, despertando nos índios o interesse pelos seus direitos - diz ela. Para melhorar as condições do parto, a ONG se pôs em campo com uma enfermeira e uma técnica que dão assistência às grávidas mensalmente.
Em média, Crislaine Silva e Nelma Ane Matos Reis atendem de oito a dez grávidas por dia. No dia 18 de janeiro havia 76 grávidas espalhadas pelas 21 aldeias da etnia pankaraku.
- Fazemos o acompanhamento mensal e também fazemos uma visita cerca de 20 dias depois do nascimento - diz Crislaine, a enfermeira.
A índia Jordana Maria da Cruz, de 21 anos, está no oitavo mês de gravidez e desde o início faz o acompanhamento.
Quer preservar sua cultura e, a exemplo da mãe e da avó, pretende ter o filho em casa e de cócoras. A diferença é que ela já sabe o sexo da criança (é menino e vai se chamar Edson) porque, como fez o pré-natal, foi submetida a uma ultra-sonografia.
- É bom saber. Minha mãe não reclamou não, até gostou - diz.
Em dia e hora previamente marcados, ela percorre longo caminho em chão de terra e sob um sol sempre muito forte em sua aldeia, a Saco dos Barros, para se consultar:
- É importante, para acompanhar o desenvolvimento da criança recita ela, num discurso que prova ter aprendido a lição. Jordana ainda não mora com o pai de seu filho, mais novo do que ela, porque ele também não consegue arranjar emprego. - Fazer o quê? - diz, num sorriso.
A SSL criou ainda um curso de parteira para que cada aldeia tenha índias instruídas para assistir as grávidas. Segundo Luzia Albuquerque, isso evita que seja preciso correr para um hospital em Itaparica, cidade mais próxima quando chegar o momento do parto. Nas enormes distâncias do sertão e com a falta de carros disponíveis, é quase impossível. Mas na hora H a cultura indígena é que vai prevalecer.
- Nós respeitamos os rituais delas, esse é nosso compromisso. Buscamos o equilíbrio entre a cultura e a infraestrutura necessária. Por exemplo: para as mulheres brancas é importante comer fibra durante a gravidez, mas não se pode nem pensar em receitar manga para uma índia, porque para elas é uma fruta proibida nesse período. Procuramos compensar, sugerindo outros alimentos da região que possam cumprir esse papel. A hora do parto também é sagrada. Damos para cada aprendiz de parteira um kit com materiais básicos, como gaze, tesoura, toalha, lanterna. Mas nada pode ser esterilizado porque isso foge aos costumes indígenas - diz Luzia.
A repórter viajou a convite da Pfizer


Quem ganha

Falar em controle de natalidade para o povo indígena é a mesma coisa que falar em extermínio da raça, garante a cientista social Luzia Albuquerque.
Assim, é com muito cuidado que ela está preparando seu próximo projeto, o de tentar levar as índias a acreditarem na necessidade de fazer um planejamento familiar. A confiança delas, talvez a parte mais difícil, já foi conseguida, sobretudo na hora de convencê-las da necessidade de se ter agentes de saúde por perto. Celia Maria Soares da Cruz, de 27 anos, da aldeia da Tapera, acha tão importante que ela mesma resolveu fazer o curso e se tornar uma agente de saúde. Célia teve a filha Cibele há pouco mais de um ano mas, por complicações na hora do parto, não conseguiu que Cibele nascesse de cócoras e teve que ser levada às pressas para a cidade mais próxima.
Fiquei sozinha na hora do parto, isso é muito ruim - diz.
Cilene da Cruz Torres, de 38 anos, da mesma aldeia, decidiu ir mais fundo: fez curso de parteira com o pessoal da SSL e, se tudo correr bem num parto, ela já consegue ajudar a gestante. Mas avisa: tem que seguir à risca aquilo que suas avós ensinavam:
Cada uma das aprendizes de parteira ganhou, no fim do curso, um kit completo com instrumentos necessários para a hora do parto. Mas nada pode ser esterilizado. Afinal, a criança nasce aqui e tudo dela é na terra. Se começar a evitar esse contato desde cedo, ela adoece. Eu tiro por mim: se tomo água com cloro caio doente diz ela, que depois do curso já conseguiu ajudar uma cunhada a ter o filho de cócoras. Ela foi para o hospital porque ficou nervosa e eu fui junto. Os médicos mandaram que ela deitasse e eu disse a ela: de cócoras é mais fácil. Ela me ouviu e saiu tudo muito bem.


Luta para reaver terras é eterna

O sol não dá descanso. A poeira entra pelos poros.
As distâncias são enormes e, na maioria das vezes, são percorridas a pé. A terra é seca. E há muitas moscas. Mas as cores do sertão brasileiro, à tardinha quando o sol se põe no Rio São Francisco ou à noite, no famoso luar, fazem valer qualquer esforço para se estar ali. Um lugar onde tudo acontece na calada. O povo fala manso, e quando quer. Quando não quer, abre a boca num sorriso e baixa a cabeça ou desvia o olhar. Mas, se ganham a confiança, homens e mulheres viram boquirrotos.
Gostam de falar, sobretudo, de seus amores, que são fortes, cálidos. Há sempre a voz masculina se apossando de uma mulher. Se o sertanejo fala manso, põe a música a gritar por ele.
Em qualquer lugar que se vá há um som alto, muito alto. Parece que ele escolhe esse jeito para fazer suas declarações de amor.
Os conflitos, esses também são fortes e calados. E envolvem sempre posse...de terra. Vivem lado a lado, índios e brancos. Mas os primeiros denunciam: a terra é deles.
A princesa Maria José Catarina doou para o povo pankararu 14 léguas Xmaria de terras aqui no sertão pela participação na Guerra do Paraguai recita de cor o pankararu José Torres, de 58 anos, líder da aldeia Tapera.
Assim como a maioria dos índios, José Torres se ressente da falta de trabalho porque, segundo conta, as terras produtivas ficaram todas para os brancos. Aos índios sobraram os terrenos secos, áridos, sem vida. Para tentar fugir dessa sorte, numa época José resolveu juntar as tralhas e ir trabalhar em Takaratu, perto dali. Foi carpinteiro durante uns dois anos e voltou para perto de seu povo.
- Ganhava bem, mas quando eu chegava aqui tinha quatro, cinco filhos que consumiam tudo o que eu trazia. Achei que ficar aqui era mais importante. Porque aqui eles comiam aquilo que eu planto quando chove. Lá eu trabalhava para enriquecer o trabalhador. Para morrer de fome, eu morro em casa - conta ele.
A informação sobre a terra é confirmada por José Auto, cacique dos pankararu.
- A maioria das terras produtivas são ocupadas por não indígenas - garante ele.
Triste por ver seu povo tão carente, José Auto sonha impossível:
- Queria puxar água do rio para o meu povo plantar. Somos trabalhadores, temos vontade de crescer, mas falta apoio. As indenizações estão se arrastando. Mesmo quem já foi indenizado não quer sair. Hoje já existem cerca de dois mil pankararu desaldeados, morando numa favela em São Paulo - denuncia.
O cacique reconhece como muito importante a presença ali da Pfizer junto com a SSL para ajudar na saúde de seu povo. Já Gustavo Barbosa da Luz, de 63 anos, líder da aldeia Caxeado, é mais incisivo quanto ao projeto: Quando o pessoal da SSL chegou por aqui, nós renascemos. A mortalidade infantil era alta, as gestantes adoeciam. Eu queria mesmo é que eles ficassem por mais dois anos - diz.
Gustavo aponta outro problema na região: a necessidade que eles têm de dar os produtos que conseguem plantar para os atravessadores venderem. Por falta de carro para transportar, os índios se obrigam a vender, por exemplo, uma caixa de pinha por R$ 5,00 para quem vem à porta deles comprar. Cento e trinta mangas saem a R$ 4,00.
Tudo sem agrotóxico, garante.
Se não vender, simplesmente perde - diz o líder, que trabalhou na Chesf (Centrais Elétricas do São Francisco) por 14 anos e hoje é aposentado. Para ele, a presença da empresa na região ajudou a valorizar mais a área e a tornar mais difícil que os brancos abandonem as terras. (A.G.)

Associação Saúde Sem Limites (87) 3851.3103


A festa do Menino do Rancho

A promessa é feita, às vezes, quando o menino ainda está dentro do útero. Se ele nascer com saúde, a mãe fará uma festa que se chama "Menino do rancho". Festa cara, com boi, carneiro, arroz ligado, farofa, pirão e a cana, que quando se mastiga muito dá uma animação boa.
Não pode esquecer de convidar os praiá, aqueles que vestem as roupas feitas da palha que os próprios índios colhem, ainda molhada, batem e põem para secar. O praiá só é usado pelos índios encantados, e ninguém sabe quem é, porque a roupa cobre tudo.
As informações sobre o ritual só vão até aí. É sagrado, não se pode fotografar nem assistir. Mas sai da aldeia para provar o famoso sincretismo religioso tão brasileiro. Em datas previamente combinadas os praiá "invadem" a igreja de Nossa Senhora da Saúde, da cidade de Takaratu, onde começou a etnia pankaraku. É uma brincadeira, porque os praiá são lúdicos: um menino índio sai correndo e atrás dele vão os padrinhos e os praiá.
O jogo acaba quando alguém conseguir pegar a criança, o que na simbologia da etnia, quer dizer que ela estará salva de qualquer doença.
É aí que começa a festa, com comida e bebida à vontade.
É uma festa cara, por isso não tem data marcada. A mãe faz a promessa e paga quando tiver dinheiro. O menino pode já ter até 10 anos de idade explica Luzia Albuquerque.

O Globo, 05/02/2007, Razão Social, p. 12-15
PIB:Nordeste

Áreas Protegidas Relacionadas

  • TI Pankararu
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.