O Globo, O País, p. 14 - 20/05/2007
O poder do dinheiro e do revólver no Alto Xingu
Na região, reina modelo de violência baseado na ausência do poder público para intermediar o conflito agrário
Fellipe Awi Enviado especial
Termo de bom-viver é um instrumento jurídico arcaico em que dois inimigos se comprometem, perante uma autoridade, a não fazer mal um ao outro. O agricultor Pedro Lira, de 23 anos, temia tanto por sua vida que só se tranqüilizou quando convenceu o fazendeiro que queria tomar o seu pequeno lote de terra a assinar o documento na frente do delegado de São Félix do Xingu, no Sul do Pará. Mês passado, Pedro foi morto com um tiro de espingarda. A orelha cortada, entregue ao mandante, significa que o crime foi encomendado.
Pedro vivia numa cidade onde ainda se assina termo de bom-viver, onde o cemitério já não dá mais vazão ao número de mortos e onde os motoqueiros foram dispensados pela prefeitura de usar capacete, que dificultava a identificação de pistoleiros. São Félix, Tucumã e Ourilândia do Norte são municípios do Alto Xingu, região que melhor representa o modelo de violência da Amazônia, baseado na quase absoluta ausência do poder público para intermediar o conflito agrário. Daí o apelido de terra do bangue-bangue.
- Aqui, quando a polícia não está corrompida, ela não atua. O poder que manda é o do dinheiro e o do revólver - afirma o frade dominicano Jean Raguènés, de Tucumã.
A última fronteira para o avanço de grileiros
O dinheiro e o revólver mandam cada vez mais aqui porque o Alto Xingu é uma das portas de entrada da Terra do Meio, a área mais preservada e de pior regularização fundiária da Amazônia paraense. É a última fronteira para o avanço de grileiros, madeireiros e pecuaristas - com mais 1,5 milhão de cabeças, segundo o IBGE, São Félix só perde de Corumbá na disputa pelo maior rebanho de bovinos do Brasil. Por tudo isso, concentra todos os tipos de desrespeito ao homem e ao meio ambiente, de trabalho escravo a queimadas, de tráfico de drogas a exploração do mogno.
Pedro Lira foi o segundo marido que Iranete perdeu na defesa de seu pedaço de terra. Nenhum dos assassinos ainda foi encontrado. O fazendeiro, que seria um suspeito em potencial por ter sido chamado a assinar o termo de bom-viver, ainda não foi convocado a depor. Enquanto isso, a engrenagem da justiça feita com as próprias mãos ganha força no Alto Xingu.
- Perdi a conta de quantas pessoas já bateram na nossa porta perguntando se queremos vingança pela morte do meu irmão. Uns pedem algum dinheiro, outros fazem de graça. Ninguém vai ser preso mesmo - conforma-se a irmã de Pedro, Vanderléia Alves.
A vingança, naturalmente, seria contra o pistoleiro contratado para cometer o crime, não para o mandante, em geral grandes fazendeiros. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), estes possuem milícias privadas que, até com armas do Exército, intimidam e matam quem os desafia na Justiça por questões agrárias ou trabalhistas. Os pistoleiros atacam, às vezes, em grupos de 15, 20 homens.
Com o auxílio da CPT, o tratorista Manoel Conceição da Silva, de Tucumã, botou seu ex-patrão na Justiça alegando que não recebera o combinado. Há duas semanas, apareceu na porta de sua casa um pistoleiro que, olhando no seu olho, lhe disse para esquecer a briga com o patrão ou, do contrário, deveria cuidar melhor da sua família.
- No dia seguinte, mandei minha mulher e minha filha de 2 anos para outra cidade. Fiquei aqui porque estou sem dinheiro e em nenhum outro lugar consigo comprar comida fiado. Preciso arrumar emprego, mas este fazendeiro já falou mal de mim para outros - afirma Manoel.
Até buscar seus direitos na Justiça, o tratorista seguiu o roteiro típico do trabalhador que acaba vítima de trabalho escravo ou tendo seus direitos desrespeitados. Quando foi chamado a trabalhar, estava hospedado num hotel-dormitório. O fazendeiro pagou sua conta e depois a debitou do salário.
- Já tinha passado por situação parecida em São Félix. O fazendeiro descontou do meu salário tudo o que eu comi, e acabei trabalhando de graça. Nem quis discutir, porque sabia que ele era muito violento - conta.
Em São Félix, pelo mesmo motivo, Raimundo Silva Lima viu a morte mais de perto que Manoel. Em abril, escapou de uma emboscada armada pelo gerente da fazenda de seu ex-patrão, a quem também está processando. Teve que se jogar num córrego para escapar dos tiros. Hoje, Raimundo tem outro trabalho e, com medo, nem aparece mais em casa, onde a mulher, grávida de sete meses, também está com medo.
- O Raimundo pôs o meu nome no processo, porque eu também trabalhava lá. Podem querer descontar na gente. O gerente só anda com uma arma na cintura - diz a mulher.
Medo de conivência de policiais com fazendeiros
Assim como Manoel e Raimundo, no Alto Xingu os trabalhadores costumam procurar a CPT antes da polícia. Existe entre eles a convicção de que policiais são coniventes com fazendeiros, o que só reforça a certeza de impunidade. Um dos mais antigos moradores do Alto Xingu, Benedito Coelho, de 71 anos, prefere se lembrar dos velhos tempos, quando os lotes de terra eram pequenos, a carne que ia à mesa era a de porco-do-mato e a comida era "vizinhada", dividida pelos vizinhos. Benedito se deu conta de que algo começava a mudar quando, há 14 anos, um de seus filhos foi assassinado. Até hoje o criminoso anda livremente pelas ruas.
- O que acabou com essa cidade foi a ambição pela terra. Nunca vi tanta ambição...
'Aqui se mata barato, até por cachaça'
São Félix não tem Ministério Público, Vara do Trabalho ou posto do Ibama
A ameaça de morte é o maior, mas não o único desafio de um trabalhador de São Félix do Xingu que se sentir explorado pelo patrão. Para ir a uma Vara do Trabalho, terá de viajar 254 quilômetros até Xinguara. Defensor público, só em Redenção, a 360 quilômetros. Nenhum município do Alto Xingu tem Ministério Público, posto do INSS ou da Receita Federal.
- O Incra está ameaçando sair daqui, a despeito de todos os problemas de disputa de terras que temos, e a prefeitura está se virando para complementar no combustível dos carros e na alimentação dos policiais. Tudo isso causa impunidade. Como pode uma região tão extensa ser tão abandonada pelo poder público? - lamenta o prefeito de São Félix, Denimar Rodrigues (PMDB).
Juiz na cidade, apenas quatro dias por mês
Somadas suas áreas, São Félix, Tucumã e Ourilândia do Norte são maiores que os estados de Santa Catarina ou Pernambuco. Terceiro maior município do Brasil, São Félix tem quase o dobro do tamanho do Estado do Rio. Há um Fórum, mas serve apenas para abrigar o juiz ou o promotor durante quatro ou cinco dias por mês, em sistema de escala que não é divulgado para a população.
- Quando um juiz ou promotor aparece é um acontecimento, a notícia corre de boca em boca. Aí vai todo mundo para a porta do Fórum - conta o comerciante Clemivaldo Alencar.
A indignação de Clemivaldo com a falta de assistência aos moradores é alimentada por um drama familiar recente. Em novembro do ano passado, seu irmão e sócio Clemivan, de 30 anos, foi assassinado a facadas no meio da rua por dois homens, que também o degolaram. O crime não foi motivado por disputas trabalhistas ou de terra - os assassinos gostavam da mulher com quem Clemivan saíra naquela noite -, mas a história retrata bem o círculo de sangue que nasce pela certeza de impunidade no Alto Xingu.
Um dos acusados do crime, Cleonardo de Freitas, está foragido, e o outro, Valdegran Almeida, foi linchado e degolado por um grupo de moradores.
- Meu medo é que achem que fomos nós que mandamos matar o Valdegran e aí venha um parente dele para matar um de nós. É uma guerra que não vai ter fim - diz Clemivaldo.
Histórias tão ou mais medonhas são comuns em São Félix.
A impressão é de que todo mundo conhece alguém vítima de um crime bárbaro. Só no mês passado, houve o trabalhador esquartejado a moto-serra, o mototaxista que teve a pele do rosto arrancada e o sujeito que matou a mulher, a enteada e a neta de 2 anos para receber um seguro. Nos três casos, houve vingança contra os matadores.
- Aqui se mata barato e com muita facilidade. Até por uma garrafa de cachaça - diz uma advogada de Tucumã que pediu para não ser identificada.
A ausência do Estado também se manifesta na defesa do meio ambiente. Embora seja há cinco anos o primeiro município brasileiro em desmatamento, com 770 quilômetros quadrados de mata derrubada em 2005 e 2006, São Félix sequer tem um posto do Ibama. O mais próximo fica em Xinguara. Um quarto de seu território é formado por reservas indígenas, mas a Funai mais próxima é em Redenção.
- Existe uma situação antiga de desrespeito à terra indígena dos Apiterewa Parakanã, invadida por madeireiros, grileiros e até por um assentamento do Incra. É uma série de omissões do estado na mesma situação - afirma o frei Jean Raguènés.
População aumentou com abertura de unidade da Vale
Apesar dos problemas, a população dos três municípios, cerca de 80 mil habitantes, segundo o IBGE, está em curva crescente. Além do interesse pela exploração da Terra do Meio, contribui para isso a instalação de uma unidade da Vale do Rio Doce em Ourilândia. A empresa está interessada em milhões de toneladas de níquel das serras do Onça e Puma. Como as contratações não começaram, os trabalhadores que chegam são logo levados para as fazendas.
Enquanto isso, os três municípios brigam pela maior parcela dos royalties da Vale.
- Não podemos ver a Vale como um substituto do governo, mas ela tem responsabilidades pelo impacto que vai causar aqui. Até agora investiu R$ 150 mil em São Félix, mas gastou muito mais em publicidade - afirma o prefeito. (F.A.)
O Globo, 20/05/2007, O País, p. 14
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