Índios guerreiros, altivos, nômades, bons caçadores, que se vestem em belos kusmas, se pintam com os mais variados desenhos e cores e se enfeitam com pulseiras, colares e cocares muito coloridos, dando um toque especial à riqueza natural de sua terra. Eles são os Ashaninka, povo indígena originário dos Incas peruanos que hoje habita diversas aldeias espalhadas ao longo do rio Amônia, no município de Marechal Thaumaturgo, situado no extremo oeste do Acre, próximo à fronteira do Brasil com o Peru.
Foi para a terra dos índios Ashaninka que eu e o repórter fotográfico Sérgio Vale, acompanhados de uma equipe da TV Nacional, nos dirigimos na segunda etapa da viagem que fizemos em maio deste ano pelas florestas do Vale do Juruá, região amazônica que pela imensa diversidade de sua flora e de sua fauna fazem do Acre a verdadeira terra da biodiversidade.
Dando seqüência à série de reportagens, que se iniciou domingo passado com os relatos de nossa ida ao Parque Nacional da Serra do Divisor, e será completada no próximo domingo, com a viagem aos índios Kaxinawá, vamos relatar hoje o que vimos e ouvimos na floresta dos Ashaninka, povo que tem uma das mais belas histórias das etnias indígenas do Acre.
Nossa viagem aos Ashaninka começa na manhã do dia 14 de maio, quando embarcamos em Cruzeiro do Sul num avião monomotor Minuano-Embraer rumo à cidade de Marechal Thaumaturgo, situada na confluência dos rios Amônia e Juruá. Viajamos para Thaumaturgo na companhia do professor Isaac Pianco, índio Ashaninka responsável pela coordenação da área educacional de seu povo. Voando baixo por sobre a floresta dos mais variados tons de verde entre os dois municípios, Isaac já nos contava um pouco da história de seu povo, suas lendas, suas tradições, suas festas e suas dificuldades em habitar em terras tão longínquas do território brasileiro. "Vocês vão conhecer de perto o nosso povo, que tem uma longa história para contar", dizia Isaac, ao se referir aos mais de 500 Ashaninka que vivem hoje no rio Amônia.
Chegamos em Thaumaturgo depois de meia hora de vôo, quando aterrisamos tranqüilamente na pista de mil metros situada do outro lado da cidade, próximo aos barrancos onde se dá o encontro das águas do rio Amônia e do Juruá. Ali, é intenso o movimento de canoas, de barcos e de batelões, com ribeirinhos, agricultores e índios baixando ou subindo rios com mantimentos, produtos agrícolas, peixes e animais domésticos. A movimentação é de um grande mercado flutuante que contorna os barrancos da pequena cidade, de pouco mais de quatro mil habitantes, cuja topografia é formada de grandes ladeiras em ruas estreitas asfaltadas, calçadas de tijolos ou simplesmente de chão batido. A topografia alta é parecida com a de Cruzeiro.
O clima de interior em Thaumaturgo é percebido logo que se desce do avião, quando os passageiros têm de levar as próprias malas nas costas até a beira do rio. É quase um quilômetro de caminhada até a uma grande escadaria que termina nas águas do Amônia, onde pegamos duas canoas com motor para se dirigir às aldeias dos Ashaninka.
Deixamos Thaumaturgo e, em poucos minutos, a paisagem voltava a ser de floresta fechada, intercalada aqui e ali com casas, roçados e pequenos campos de criação de gado dos ribeirinhos da região. Quase duas horas depois, passamos pela aldeia dos índios Arara, um aglomerado de ocas construídas na beira do rio, que podem ser vistas de longe. Os Arara, recém agregados na região, esperam ainda a demarcação de sua terra indígena pela Funai, exigindo que a ela seja incorporada parte do que é hoje a Reserva Extrativista (Resex) do Alto Juruá, situada na margem direita do Amônia, onde habitam mais de 60 famílias de seringueiros.
O conflito social ali é iminente porque os seringueiros assentados na reserva extrativista já tiveram de deixar para trás sua história, suas casas, suas benfeitorias e suas produções para cederem suas áreas para formar a Terra Indígena Ashaninka. "Estamos dispostos até a morrer, mas não vamos deixar novamente as nossas áreas para esses índios, que não estavam aqui antigamente", disse o seringueiro conhecido como Chico Velho, que nasceu na região, assim como seus pais. Chico Velho ressaltou que os seringueiros mantêm bom relacionamento com seus vizinhos Ashaninka, mas não reconhecem como índios todos os Arara que chegaram na área.
O rio Amônia também está mais estreito nesta época do ano, quando as águas já baixaram mais de três metros, deixando alguns balseiros em certos trechos que dificultam e atrasam a viagem até a terra Ashaninka, na fronteira com o Peru. Meia hora antes de chegarmos a aldeia central dos Ashaninka fomos surpreendidos com uma chuva forte, que obrigou a todos a se proteger debaixo de lonas e outros a trabalhar intensamente para tirar o excesso de água que se acumulava dentro das canoas.
Já era final de tarde quando, finalmente, chegamos à aldeia central dos Ashaninka, onde depois de alguns sacrifícios para subir os barrancos enlameados e muito lisos, o cacique Antônio Pianco nos deu as boas vindas e nos conduziu para o grande alojamento de visitantes que foi construído na aldeia com o apoio do governo do estado. "Sintam-se à vontade porque vocês são bem vindo para conhecer a nossa terra e o nosso povo", disse, esbanjando simpatia, o cacique Antônio Pianco.
Depois de refeitos das intempéries do temporal que nos pegou no rio, nos dirigimos ao outro lado do rio Amônia, onde a grande maioria dos índios estreava na casa de Benke Pianco, filho do cacique Antônio, a festa da caiçuma, bebida inebriante feito de mandioca fermentada, que leva os índios a tocarem, a dançarem e cantarem músicas que retratam o seu cotidiano na floresta. A festa havia começado na manhã daquele mesmo dia e iria durar até que se acabasse a caiçuma feita por algumas famílias da aldeia central. Pela tradição, a festa da caiçumada só termina depois que é consumida toda a bebida preparada, o que pode demorar até quatro dias.
Todos na aldeia estão satisfeitos e muito alegres por comemorar mais uma jornada de trabalho na mata, que quase sempre começa com a colheita da mandioca e do arroz e termina com uma boa pescaria ou uma feliz caçada de animais silvestres, exclusivamente destinados à alimentação da aldeia. Pintados e enfeitados com belos colares, os índios se reúnem na parte da frente de uma casa de paxiúba, enquanto são abastecidos, periodicamente, pela caiçuma servida em cuias de cuité pelas mulheres da aldeia, que permanecem juntas no local em que se encontram os grandes recipientes, parecendo pequenas canoas, em que é preparada a bebida. "A bebida serve para a gente fazer reverência às nossas entidades espirituais", explicou o professor Isaac, um exímio tocador de flauta.
A flauta de Isaac é acompanhada pelas fortes batidas dos tambores que os Ashaninka tocam para acompanhar suas canções, que, em língua nativa, saúdam a vida, a floresta, o céu, as árvores, os pássaros, os animais e toda a natureza. "Estamos muito felizes por estarmos podendo saudar as coisas bonitas da natureza", disse Benke Pianco, considerado na aldeia um misto de pajé e grande guerreiro. Desde a infância, Benke sempre gostou de ficar próximo aos pajés para aprender com eles os segredos da espiritualidade e da natureza. "Os pajés conhecem os segredos da natureza e são capazes de fazer reviver os que estão muito doentes. Eles vão lá buscar as pessoas que já estão muito longe", acrescentou.
A noite vai terminando, a madrugada vem chegando e os Ashaninka vão se mantendo firmes tocando tambores, dançando e cantando músicas dedicadas aos bons espíritos, que garantem a boa colheita, a boa alimentação, a boa saúde e a boa prática de sempre retirar da natureza apenas o que dela necessita, sem destruí-la, sem devastá-la, conservando-a e preservando-a para sempre poderem dela dispor.
Nos intervalos das canções, Benke Pianco vai contando detalhes da "grande batalha" que seu povo vem tendo nos últimos quatro anos para afastar de sua reserva - demarcada pela Funai em 1992, com 87,2 mil hectares - os madeireiros peruanos, que já derrubaram até agora cerca de cinco mil árvores de grande valor comercial, devastando e destruindo uma área de floresta da aldeia e mais de sete mil hectares.
Ao lado de Benke, seu irmão Isaac confirma que, em março passado, a Polícia do Peru fez apreensão de equipamentos de uma grande empresa daquele país que estava derrubando ilegalmente grandes árvores de uma área de floresta, próxima à fronteira com o Brasil, ocupada por traficantes peruanos de cocaína, que também têm dado grandes dores de cabeça aos Ashaninka.
Os índios relataram que a ousadia dos traficantes peruanos chegou a tal ponto deles já terem oferecido dinheiro para fazerem pista de pouso para pequenos aviões dentro da reserva indígena. Por uma pequena pista de pouso escondida na selva, os traficantes prometeram pagar 30 mil dólares (ou mais de R$ 90 mil), além de mais US$ 30 mil por cada pouso com carregamento de droga.
Além de rechaçarem tais ofertas, os Ashaninka passaram a combater os traficantes peruanos, que já conseguiram, segundo eles, cooptar em troca de muitos dólares a ajuda de boa parte dos ribeirinhos e agricultores do meio rural de Thaumaturgo, cidade cuja juventude também já estaria em grande parte viciada no uso de cocaína. Outros relatos dos índios dão conta que após a instalação de um posto do Exército em Thaumaturgo, a cocaína peruana começou a passar pela cidade, rumo à Cruzeiro do Sul, durante as madrugadas em barcos com motores desligados. Ou pela própria selva, com ajuda de agricultores e ribeirinhos da região.
Com a decisão dos Ashaninka de denunciarem às autoridades brasileiras o tráfico internacional de madeira e cocaína na fronteira, como fez em fevereiro deste ano em Brasília o índio Benke Pianco, o clima de animosidade contra eles na região chegou a tal ponto que muitos já tiveram que subir ou descer o Amônia encapuzados para não serem identificados e sofrerem atentados. Nos últimos quatro anos, não foram poucos os Ashaninka que sofreram ameaças de morte.
"Vai ser muito difícil acabar com o tráfico de drogas nesta região de fronteira porque tanto pessoas do meio rural, quanto muita gente da cidade de Thaumaturgo estão colaborando com o tráfico em troca de dinheiro", confessou um ribeirinho do Amônia, pedindo para não ser identificado por temer represálias. Aliás, ao longo do rio, no percurso entre Thaumaturgo e a terra dos Ashaninka, pudemos observar em várias localidades muitos barcos novos, com motores possantes, ancorados em uma só propriedade.
Há três anos, o cinegrafista Samuca Melo, da TV Gazeta, de Rio Branco, que esteve em Thaumaturgo acompanhando uma operação de repressão ao tráfico de drogas feita pela Polícia Militar do Acre, chegou a produzir um vídeo contendo diversas entrevistas em que, encapuzados, moradores das áreas rural e urbana de Thaumaturgo denunciavam inclusive a presença de narcoguerrilheiros colombianos na região. Cópia do vídeo foi entregue à época por autoridades acreanas ao Gabinete Institucional da Presidência da República, no Palácio do Planalto.
Sempre atentos ao que ocorre nas suas terras e em boa parte da fronteira do Brasil com o Peru, onde já constataram a existência de grande conflito entre madeireiras clandestinas e plantadores de coca - as primeiras avançam com suas máquinas potentes destruindo as áreas de plantio da droga - os Ashaninka vão tocando suas vidas de guardiões e bons preservadores da floresta.
Além das roças de mandioca e de arroz, os Ashaninka desenvolvem hoje alguns dos melhores projetos de manejo sustentável do Acre, tanto na área de floresta quanto nas áreas de animais silvestres e de abelhas. Já reflorestaram, com árvores de copaíba, cumaru, bálsamo e mogno, principalmente, mais de 40 hectares de áreas que haviam sido devastadas pelos brancos que ocupavam a região antes de sua demarcação como terra indígena.
Os índios também já plantaram, próximo da aldeia central, mais de cinco hectares com árvores frutíferas regionais, como cupuaçu, graviola, sapoti, abil, manichi e manga. Além disso, escolheram grandes áreas de floresta para o repovoamento de animais silvestres, que estavam desaparecendo da região devido à caça predatória promovida pelos brancos antes da demarcação. Nestas áreas, não vai se caçar por um bom tempo para que os animais se multipliquem e repovoem a floresta.
Ao longo das aldeias, já foram plantados mais de 1.600 mudas de coco. Num cercado ao lado da casa de Benke, encontramos mais de 60 grandes jabutis criados em cativeiro. No meio da aldeia central, um pequeno açude já acumula mais de 1.700 pequenos tracajás, que em muito pouco tempo vão se multiplicar para serem espalhados no Amônia ao longo da terra indígena. Há, ainda, criação de abelhas ao redor de todas as casas das aldeias. "Estamos cuidando para que nossa floresta fique mais rica de tudo de bom que ela oferece para nós", afirmou Benke Pianco, ao ressaltar ter aprendido o manejo sustentável por pura intuição de saber que quando a natureza é bem cuidada, ela produz tudo de bom que o homem precisa.
Na aldeia central dos Ashaninka, onde se situa o maior aglomerado de casas, quase todas semi-abertas e suspensas em barrotes de madeira, um campo de futebol, de tamanho quase oficial, é o que mais lembra os costumes do homem branco. Ali, muitos jovens Ashaninka, velozes e muito ágeis com a bola, costumam, sob aplausos de todos da aldeia, ganhar torneios disputados com equipes vindas das localidades ribeirinhas próximas e também de Thaumaturgo, de onde já veio disputar, inclusive, um time do Exército pelo qual os índios tanto lutaram para ver instalado na região a fim de dar mais proteção a essa fronteira brasileira tão rica em termos de biodiversidade amazônica.
Ali, a presença dos brancos também é notada pelo telefone público e a Internet, que se encontram instalados na aldeia central e servem de instrumento de comunicação essencial para o funcionamento da cooperativa dos índios, que centraliza a troca de mercadorias e suprimentos básicos como sal, fósforo e hélice de motor, comprados em Thaumaturgo e em Cruzeiro nos dois batelões existentes na aldeia, por paneiros, flautas, tambores, kusmas e uma infinidade de bonitos artesanatos produzidos por cada uma das famílias da tribo.
De tempos em tempos, para fazerem jus à sua tradicional cultura nômade, grupos de Ashaninka atravessam a fronteira para se encontrarem com outros Ashaninka, que no Peru, segundo o professor Isaac Pianco, somam mais de 80 mil indivíduos, que vivem espalhados ao longo dos rios Ucayali, Tambres, Perene e nas cabeceiras do rio Juruá. No Acre, também existem aldeias Ashaninka nos rios Envira, Tarauacá e Breu.
As viagens periódicas para visitar os parentes, de acordo com o professor Isaac, fazem parte, afinal, da qualidade de vida de seu povo, que vêem na liberdade de andar pela floresta uma das razões da longevidade que até bem pouco tempo alcançou o Ashaninka de nome Hirori, que viveu perto dos 150 anos, e sua mulher Shoerana, que foi levada pelos "bons espíritos" da floresta quando já tinha quase 130 anos.
PIB:Acre
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- TI Kampa do Rio Amônea
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