Quando os estudantes Glaysson e Jaciara Caxixó tiveram que escolher um tema para a realização de um documentário, dentro da disciplina de produção audiovisual do Curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas (Fiei) da UFMG, não tiveram que ir buscar muito longe. A própria realidade atual da comunidade dos índios caxixós, onde vivem, no município de Martinho Campos, Centro-oeste do Estado, lhes forneceu material para a narrativa do filme "Casca do Chão", que já foi editado e está sendo finalizado pela oficina de audiovisual do Fiei.
A área do Capão do Zezinho, onde vivem em comunidade cerca de 300 caxixós, tem um longo histórico de exploração por fazendeiros das terras sobre as quais o povo indígena vive desde muito antes do período da colonização. E agora eles lutam na Justiça pelo reconhecimento de suas terras como território indígena. "O reconhecimento da terra é um grande assunto nosso. E o vídeo pode servir como documento e também porque torna o assunto público", diz a realizadora Jaciara, 21, que participou de todo o processo de produção de "Casca do Chão", do roteiro à edição.
Junto com Glaysson, Jaciara realizou um documentário da cultura dos caxixós - arqueologia, danças, hábitos de alimentação - por meio do registro de sons e imagens e, sobretudo, da narrativa oral do cacique Djalma, o principal detentor do conhecimento da tribo, acumulado ao longo de séculos. "O filme é o momento que a gente tem de buscar os objetivos da nossa cultura. Buscamos o nosso conhecimento, informações sobre onde estiveram as moradas e os sítios arqueológicos", explica Glaysson. "Temos que buscar isso para não perdermos nossa terra e nossa cultura."
Oficina. "Casca do Chão" foi realizado durante uma das oficinas do Fiei, que têm direção de Pedro Portella. "Quando vamos ensinar, mostramos o vídeo como uma ferramenta de afirmação da etnicidade desses povos", diz Portella, que já passou pelos projetos Guernica e Vídeo nas Aldeias.
Ele acredita que um acesso tão íntimo a uma determinada cultura - como acontece em "Casca do Chão" - só pode acontecer quando o processo de produção é passado para as mãos dos membros daquela comunidade. "O cacique Djalma revelou realmente sua cultura. Ele tirou de um saco a escritura dos caxixós, que para ele são pedras lapidadas. É uma forma de vida que a gente, como não-índio, jamais teria acesso. Só com uma oficina de documentário como essa temos a possibilidade de entrar e ir muito fundo nessa realidade. Uma possibilidade de ir nas tripas, de sair da pele, dessa imagem esterotipada que a gente tem do índio como bom selvagem."
Portella diz trabalhar com o pressuposto de que uma "oficina séria" tem de ter uma metodologia rigorosa, de modo que resulte num filme de qualidade. E que as coisas sejam mostradas "do jeito que eles querem", sob a perspectiva de "respeitar o desejo desses povos de se auto-expressarem."
Frase
"Muda o jeito de eles olharem para si próprios. Alguns estão descrentes e questionando
sua própria etnia e recomeçam a se pintar e a dançar"
Pedro Portella
Diretor de filmes
Filmes
"Casca do Chão" foi feito em dez dias de oficina, sob a direção de Pedro Portella.
Pedro é diretor do documentário "Memórias e Improvisos de um Tipógrafo Partideiro"
Xacriabá. Além de "Casca do Chão", realizado com a tribo dos caxixós, o próximo documentário a ser produzido nas oficinas do Fiei será com os xacriabá, que vivem no Vale do Jequitinhonha e são hoje a tribo mais numerosa do Estado.
Documentário como produção cultural
Transformação está em quem detém os meios de produção
A alteridade sempre foi um tema fundamental do documentário. Como representar o outro? Essa questão ética é colocada justamente porque, quase sempre, a realidade foi registrada por pessoas alheias a ela. Com a difusão do cinema comunitário e o aprofundamento do estudo da antropologia visual, pode estar acontecendo uma transformação significativa nessa discussão, já que os filmes passam a ser realizados por sujeitos da realidade representada.
Por sua vez, o crítico e cineasta Jean-Claude Bernardet não concorda. "A transformação significativa de base está na questão de quem detém os meios de produção. Eles até podem passar a máquina para as mãos do outro, mas em geral quem detém os meios de produção são os oficineiros", diz o autor de "Cineastas e Imagens do Povo". Ele lembra de casos de grupos paulistas que têm se organizado para fazer seus vídeos circularem só na periferia, assumindo a autonomia de todo o processo. Algo próximo das propostas da TV Caracol, produzida por moradores do Aglomerado da Serra, e do Circuito TV de Rua, que faz projeções nas paredes das casas no morro. "A passagem dos meios de produção e exibição é para as mãos dos índios ou dos periféricos. Aí muda muito', diz Bernardet. "Nessa passagem, a periferia deixa de ser periferia. Torna-se centro. A periferia é periferia para nós. Então quando as pessoas dizem eu moro na periferia é porque estão relacionando elas mesmas com o nosso olhar. A partir do momento que esses bairros se tornarem produtores, aí eles se tornam centros."
Se na maioria das vezes o cinema comunitário não representa uma "transformação significativa de base" para a questão do documentário, é inegável, porém, que os projetos de democratização do acesso são um motor importante para um processo de autonomia dos sujeitos de outras realidades, mesmo que os editores ainda sejam os oficineiros. É ao mesmo tempo positiva e inevitável, por exemplo, a alfabetização dos índios dentro da gramática do não-índio. "Não há possibilidade de representação de si sem linguagem. Além disso, quanto aos índios não sei muito bem, mas as outras pessoas, na cidade ou no interior, já têm uma educação visual que lhes é fornecida pela TV. Não existe mais atualmente um olhar ingênuo na área do audiovisual", diz Bernardet. (DR)
PIB:Leste
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