O Globo, Razão Social, p. 12-13 - 05/01/2009
Da tocha aos bytes
Com estação digital, aldeia indígena entra em nova forma de comunicação com o mundo
Amelia Gonzalez
amelia@oglobo.com.br
Rondonópolis, MT
Sentado num banco dentro da oca transformada em estação digital Wawã Paju, na aldeia escola de sua tribo, o cacique Benamo olha em volta com uma expressão que não deixa dúvidas: ele gosta do que está vendo. Só não o peçam para entender e usar os computadores. Aquilo é coisa para o filho, Zawandu, para a nora, para os outros jovens da aldeia. Não para ele. Se nem mesmo quis aprender a língua do branco, que dirá mexer naquelas máquinas que fazem aparecer letras numa tela. São coisas da cultura ocidental, que Benamo deixa tão distante dele quanto hoje é a tocha que usava para aliviar a escuridão. Mas respeita. Afinal, o velho cacique (ele não sabe dizer quantos anos tem, mas acha que está entre 50 e 60) entende que para os jovens de sua aldeia é importante ter acesso àquela cultura. Não aprender a usar o computador seria como entrar desarmado no território inimigo.
- Quero que eles aprendam a cultura dos dois lados, do lado dos índios e do lado dos brancos.
Eles precisam disso disse na língua tupi-mondé, tendo o filho Zawandu como intérprete.
Para receber a imprensa e mostrar os computadores que ganharam da Fundação Banco do Brasil há cerca de um ano, os índios da etnia Zoró organizaram uma gincana. Enfeitaram de penas a entrada da Aldeia Escola Anguytatua, que fica a mais de mil quilômetros de Cuiabá, no Mato Grosso; vestiramse com trajes de festa, uns de vermelho, outros de preto, e pintaram os rostos. Antes do início dos rituais, o cacique Manoel Thoatore deu as boas-vindas e contou um pouco da origem de sua etnia às equipes de reportagem.
- No início nós estávamos esparramados por aí, mas agora estamos só aqui, todos juntos. Vivemos em paz porque se nós discutirmos e brigarmos uns com os outros, agora não temos mais para onde ir.
Antes não podiam se casar entre clãs diferentes, mas hoje até pode, porque senão a etnia morre lamentou ele, tendo sempre como intérprete o jovem Zawandu, de 20 anos. A etnia Zoró está espalhada em cerca de 400 mil hectares de terra para 23 aldeias e nove clãs.
Ao todo, segundo informações da FUNAI, hoje há cerca de 650 zorós. Eles são um povo alegre, simpático. Mas as mulheres se calam diante de qualquer estranho, olham sempre para seus homens se alguém lhes pergunta alguma coisa, dão um sorriso tímido e se afastam. Na aldeia em festa, uma exposição foi montada para mostrar aos repórteres cada um dos objetos usados pela tribo em suas origens. Coube ao cacique Thoatore fazer as demonstrações, com direito a interpretações teatrais: quando mostrou o machado que usavam para fazer a roça, simulou um choro copioso:
- É para mostrar como sente saudades do pai dele, que usava este machado explica Zawandu aos brancos.
Crianças e jovens indígenas acompanharam as demonstrações, talvez com tanta curiosidade quanto os brancos, já que muito do que estavam vendo ali está distante de sua rotina. A preservação da cultura é uma das preocupações da etnia Zoró. E para recuperar sua história servirão também os computadores, assegura Ligia Neiva, assistente técnica de ensino da Funai, que viabilizou a parceria com a Fundação.
Nas aulas, os jovens índios aprendem a digitar a partir da história de seu povo, contada por um orientador cultural . Eles digitam primeiro na língua tupi-mondé e depois na língua do branco. Vinte alunos já foram capacitados, dos quais 15 índios e cinco moradores da região. Estamos começando novo curso disse ela.
A manutenção dos computadores está sendo feita pela FUNAI e uma parceria com a Prefeitura de Rondolândia garante o custo do servidor para o acesso à Internet. E é aí que entra a segunda vantagem da estação digital para os índios. Através de pesquisa, e trocando informações via e-mail, eles vão descobrindo maneiras mais eficazes de garantir seu sustento. Os zoró são extrativistas, vivem basicamente de colher castanha, quase cem toneladas por ano, e descobriram, trocando mensagens, uma forma nova e mais eficaz de secá-la.
Na escola da Aldeia, onde os índios aprendem a lidar com o mundo digital, outros ensinamentos são dados, estes mais próximo da realidade que os índios enfrentam hoje. Cartazes feitos pela Funai mostram os principais desafios dos Zoró:
"Conseguir transporte para os alunos; fortalecer a educação básica nas aldeias; fortalecer a produção de artesanato; ter um plano manejo florestal; ter boas estradas e pontes seguras; chegar à faculdade".
Ao lado deste, um outro cartaz mostra as ameaças que enfrentam:
"Conflito com transeuntes da estrada; assédio de alguns trabalhadores da ponte (que está sendo erguida pelo governo federal sobre o Rio Branco, que ladeia a aldeia) para com as índias; assédio dos madeireiros com as índias; poluição dos rios por parte dos madeireiros e fazendeiros".
-A mata é nosso sustento, não pode acabar.
O rio antigamente tinha tanto peixe que se jogasse o arpão em qualquer lugar, a gente conseguia muitos. Agora tem muito menos. O branco não pode ficar cortando árvore para fazer móvel de madeira disse o cacique Benamo, reforçando o conflito latente, quase insolúvel, entre as duas raças.
Desde 2004, a Fundação Banco do Brasil desenvolve o Programa de Inclusão Digital: atualmente são 243 estações em todo o país.
*A repórter viajou a convite da Fundação Banco do Brasil
Contato com os brancos trouxe novidades e doenças
Foi ali, no Rio Branco, pequeno afluente do rio Paraguai, o primeiro contato entre branco e zorós em 1979. O encontro mudou a vida, trouxe muitas coisas boas e ruins. Mas foi um marco, que merece ser relembrado. Expansivos em seus gestos e falas, os zorós decidiram fazer um teatro a céu aberto para os brancos conhecerem essa história.
Alguns se vestiram com roupas de brancos, puseram até barba postiça. E todos os participantes da gincana (mais de cem índios) caminharam os poucos metros que separam a aldeia escola do palco natural, o rio, para assistir ao espetáculo. Excitados com o acontecimento, confundiam a cena e dificultavam a vida de quem queria entender quando e onde a peça iria acontecer. Até que uma canoa feita com casca de roxinho (árvore local) se aproximou da margem do rio, sendo conduzida por dois índios. Era este o transporte antes de conhecerem os brancos e seus motores. Foi o início do primeiro ato.
A canoa voltou de onde veio. E o cacique Thoatore assumiu seu posto à beira de uma pedra, onde começou a fazer gestos de espanto, de medo, aflição, num vai-e-vem incessante, em círculos. É que lá longe vinham chegando os brancos, ou melhor, índios caracterizados, de barba, calça comprida, camisa de manga. O primeiro contato mostrou índios amedrontados e brancos solícitos, oferecendo açúcar, refrigerante, panelas, armas, até um tênis. Os brancos não desciam de suas canoas motorizadas: jogavam as iguarias e iam embora.
Thoatore, a esta altura, já estava cercado por outros atores. O grupo ia experimentando, avidamente, tudo o que ganharam dos brancos.
Gostaram do açúcar, lambiam o refrigerante, tinham medo das armas, calçavam o tênis de maneira errada. No segundo encontro, menos temerosos, ganharam mais coisas e deixaram os brancos ficarem.
Os brancos vêem e vão, somem da cena. Ficam os índios e seus presentes. E começa um segundo ato: tossindo e espirrando muito alto, para que todos pudessem ouvir, a peça dos índios simula as sequelas que vieram com o encontro, deixando a todos nós, brancos, que assistíamos ao teatro, bastante constrangidos. As iguarias trouxeram doenças e algumas mortes, traduz para mim o cacique Benamo:
Antes era difícil fazer a roça com aquele machado tão pequeno. O branco nos apresentou outro, melhor. Mas eu não sabia que, junto com essas coisas boas, vinha também tanta doença e tristeza. Só que a gente não tinha outra coisa para fazer, porque as terras foram ficando pequenas, os brancos foram tomando tudo. Já fui até Manaus aqui por esse rio, na minha canoa, sem encontrar nenhum branco. Hoje não dá para chegar nem até ali - disse ele.
E se pudesse voltar no tempo? O encontro seria igual?, pergunto eu, já intuindo a resposta:
-Não. Se pudesse voltar, eu não teria feito contato com os brancos.
O Globo, 05/01/2009, Razão Social, p. 12-13
PIB:Rondônia
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