Trabalho médico ético, não biopirataria

FSP, Brasil, p. A12 - 19/12/2009
Trabalho médico ético, não biopirataria

Hilton Pereira da Silva
Especial para a Folha

Em diversas reportagens recentes publicadas em jornais e websites do Brasil e do exterior o meu nome aparece ligado a atos de biopirataria sem que eu jamais tenha sido ouvido por estes veículos. As reportagens referem-se à venda de células sanguíneas dos índios Karitiana e Suruí, de Rondônia, pelo laboratório norte-americano Coriell Cell Repositories, e a duas CPIs na Câmara Federal que abordaram o assunto. Declaro que não tenho qualquer envolvimento com esta ou qualquer outra empresa de material biológico.

Em agosto de 1996, eu trabalhei entre os Karitiana como antropólogo consultor em um documentário para o canal Discovery e, como sou também médico e sanitarista, pude constatar sua precária situação sanitária e a total ausência de profissionais de saúde na aldeia. Após as filmagens do documentário (que foi ao ar em 1997), eu fui convidado pelo chefe Garcia, em nome da Associação Karitiana, para permanecer na aldeia e ajudá-los com atendimento médico emergencial. Tendo recebido a permissão do chefe do posto da Funai na aldeia, realizei consultas, exames e entreguei os medicamentos disponíveis no posto às pessoas que me procuraram na aldeia e depois, também a pedido dos Karitiana, por algumas horas na casa do índio. Para estabelecer o diagnóstico complementar de certas doenças, algumas amostras de sangue foram colhidas de quem estava mais doente ou de quem não pude fazer um diagnóstico clínico adequado, e levadas para análise na Universidade Federal do Pará, onde todo o material permaneceu depositado até ser solicitado pela Justiça de Rondônia, para quem todas as amostras coletadas foram entregues em 1998.

Como eu dispunha apenas de um kit para emergências médicas, que me acompanha sempre que vou ao interior da Amazônia, e não estava preparado para atender uma etnia inteira, pois não era esse o propósito de minha entrada na aldeia, apenas poucas amostras foram coletadas, das pessoas que eu não consegui estabelecer claramente um diagnóstico. Assim, o sangue por mim coletado não saiu do Brasil e não teve, em hipótese alguma, destino comercial, visto ser isto contra a minha ética e os princípios morais dos pesquisadores e instituições com os quais trabalho. Ele foi coletado emergencialmente apenas para ajudar no diagnóstico de doenças, procedimento médico regular, de acordo com o artigo 57 do Código de Ética Médica.

Repito: eu, com apoio voluntário de minha acompanhante na ocasião, que é brasileira, não é profissional de saúde, como acusam algumas reportagens, e ajudou com atividades lúdicas apenas, prestei atendimento médico aos Karitiana em caráter voluntário, humanitário e emergencial. Não lhes prometi atendimento futuro e não fiz nada que lhes fira os interesses. O relatório das atividades médicas emergenciais desenvolvidas na aldeia foi enviado à Associação Karitiana, à Funai de Rondônia e de Brasília, ao CIMI de Rondônia, à Procuradoria-Geral de Rondônia e a duas CPIs da Câmara Federal sobre biopirataria. Eu jamais estive entre os Suruí ou em qualquer outra aldeia indígena no Brasil. Em 1997 e em 2005, ambas as CPIs reconheceram que não há qualquer relação entre meu trabalho médico emergencial e o material indígena à venda nos EUA.

Uma simples busca na internet mostra que o material à venda no exterior provém da coleção Stanford/Yale, foi coletado na década de 1980 por pesquisadores norte-americanos, possivelmente com a permissão da Funai, e já estava sendo vendido na internet desde abril de 1996, portanto cinco meses antes de eu ir até a aldeia Karitiana. No início de 1997, eu e outros pesquisadores brasileiros fizemos contato com o laboratório para que se pronunciasse sobre o assunto e conversamos com autoridades brasileiras para solicitar providências sobre o material no exterior. Nossas solicitações de contato foram ignoradas.

Apesar de eu ter por mais de uma década respondido a todos os artigos dos quais tenho conhecimento e a todos os que têm me procurado, erros grosseiros sobre a minha pessoa continuam a ser publicados. Em 21 de junho de 2007 a Folha publicou um artigo apresentando de forma distorcida os fatos, que insinua minha participação em atos de biopirataria.

Ainda que meu nome e endereço estejam facilmente acessíveis em diversos sites na internet, como no Lattes do CNPq, e em diversas outras formas que, certamente, seriam de fácil acesso para o MP, a PF, ou qualquer outro órgão federal, de imprensa ou cidadão interessado, e inclusive na ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (que não versa sobre comercialização de sangue), eu não fui procurado pelo sr. Larry Rohter ou pela Folha de S.Paulo para prestar quaisquer esclarecimentos sobre o absurdo envolvimento do meu nome com o caso supracitado.

A biopirataria é uma questão a ser seriamente investigada pelas autoridades brasileiras, pela comunidade científica e pela imprensa. O uso comercial de produtos biológicos sem que seus doadores sejam beneficiados é absolutamente imoral, antiético, e deve ser repudiado por toda a sociedade. Como cidadão brasileiro, como profissional de saúde e como pesquisador é meu dever proteger as pessoas com as quais trabalho e resguardar-lhes os interesses. Esta tem sido a minha postura em mais de uma década de atuação entre os grupos rurais da Amazônia.

FSP, 19/12/2009, Brasil, p. A12
PIB:Rondônia

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