Um punhado de bravos

Istoé-São Paulo-SP - 14/05/2003
Duas décadas depois de reencontrar o homem branco, seis índios avás-canoeiros lutam contra a extinção da etnia

Futuro: continuidade do
grupo depende da garota
Putdjawa (a cima) e de
seu irmão, Thrumak

Únicos representantes da novíssima geração avá-canoeiro, os adolescentes Putdjawa e Thrumak honram a sintonia com as águas, cultivada por seus antepassados e propagada pela voz de Milton Nascimento na música Canoa, canoa. Mesmo assim, cada vez que os garotos saem para nadar, o resto da tribo não disfarça a inquietação. É que, na luta pela sobrevivência, eles acabaram se afastando das margens dos rios, onde ficavam mais vulneráveis à ação do homem branco. Na reserva dos avás-canoeiros, que se espalha por 38 mil hectares de cerrado no norte de Goiás, sobreviveram apenas seis índios. No final dos anos 60, eles eram pelo menos 150. "Homem chegou e matou tudo com espingarda", lamenta a matriarca Matcha, com 67 anos presumíveis. "Menino e velho, homem cortou cabeça." Junto com outros quatro sobreviventes, Matcha escapou do massacre ao se embrenhar pelo mato. Depois, foram quase 15 anos se escondendo em cavernas da região inóspita, repleta de cascalho, até reencontrar o homem branco, duas décadas atrás. Atualmente, eles vivem no alto de uma montanha, em território demarcado, mas a ameaça de extinção continua. Desta feita, mais do que da espingarda, o perigo vem do isolamento cultural, da dificuldade em procriar e das alterações ambientais que chegam com as grandes obras hidrelétricas.

Por causa dos tempos em que se esconderam nas cavernas, os avás-canoeiros ganharam fama de ser um povo invisível, pois jamais eram avistados ou deixavam pegadas. "Nem cachorro latia", lembra Reginaldo Gomes da Silva, ex-morador da região. Os posseiros sabiam da presença do grupo porque ferramentas deixadas nas roças sempre desapareciam. Pequenas quantidades de mandioca e de outros alimentos também sumiam das plantações. As raízes, os grãos e as frutas surrupiados no silêncio das noites enriqueciam as refeições indígenas, que tinham como base carne de morcego e de rato silvestre. No cotidiano, as provas de resistência não se limitavam à conquista do alimento. Dos cinco que escaparam do ataque à aldeia, restaram Matcha, sua irmã Nakwatcha e um integrante de outra família, Iawí, hoje com estimados 42 anos.


Meninote, Iawí começou a fuga acompanhado da mãe, posteriormente morta por caçadores. Entre os sobreviventes, havia ainda um homem adulto. Com ele, Matcha teve uma filha, Tuia. Em história de índio ninguém sabe determinar datas, mas todos se lembram de que a garota nascida na caverna já sabia andar quando o pai morreu, atacado por uma onça. A partir daí, a preservação da etnia ficou a cargo de Iawí, que se casou com as três mulheres. Com Tuia, teve os filhos Putdjawa e Thrumak.

Flechadas - Os adolescentes ainda não tinham nascido quando os boatos sobre a presença de índios isolados se intensificaram nas imediações da Serra da Mesa, a 80 quilômetros do local do massacre. Como os colonizadores do passado, muitos posseiros estavam dispostos a matar os "selvagens", caso um dia topassem com eles. Havia, no entanto, pouca expectativa em encontrá-los. Desde 1946, o governo federal organizava frentes de atração sem nenhum sucesso. Aparentemente, não restavam mais do que lendas sobre a nação que no passado dominara todo o Alto Tocantins e começara a ser exterminada no século XVIII, com a colonização de Goiás. "Eles eram considerados um povo extinto quando provocaram o contato, depois de observar por muito tempo os hábitos dos regionais", afirma a antropóloga Eliana Granado. A aproximação foi feita com o morador Reginaldo, então com 18 anos, que num amanhecer de julho de 1983 seguia por uma trilha no meio do mato. "Quando eles apareceram, notei que não era gente não, era índio mesmo. Estavam todos nus. Contaram muitas histórias que eu não entendia, por causa da língua", relata Reginaldo, que hoje é barqueiro. Depois de quase meia hora de indecisão, ele colocou a espingarda no ombro para retomar seu caminho, mas, à pequena distância, o grupo continuou a segui-lo. "Com a chegada de muitos posseiros, a área de caça deles estava ficando cada vez menor."

Dois dias depois, indigenistas da Funai já desembarcavam no local. De lá para cá, os avás-canoeiros tiveram sua terra demarcada, mas a ameaça de extinção permanece. Em primeiro lugar, porque na época das cavernas eles adquiriram uma espécie de aversão a crianças, sinônimo de estorvo nos momentos de fuga. "Menino faz barulho, suja chão", diz Nakwatcha, que não teve filhos. Por algum motivo que o grupo não revela, a líder Matcha só permitiu o nascimento de Putdjawa e Thrumak. Agora, a continuidade da etnia depende dos adolescentes. Aos 13 anos, Putdjawa teve sua primeira menstruação em dezembro, o que, em outra comunidade indígena, sinalizaria prontidão para o casamento. Três anos mais velho, Thrumak já estaria casado se pertencesse a outra aldeia. "Ainda estou novo", desconversa o garoto.
PIB:Goiás/Maranhão/Tocantins

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