Desafios e tensões no início de 2010

Jornal Porantim - http://www.cimi.org.br - 26/02/2010
Advogado e Assessor Jurídico do Cimi

O ano de 2010 começou indicando que os povos indígenas continuarão
vivenciando muitas preocupações e desafios.

No âmbito do Poder Executivo, as legítimas dúvidas em relação à nova
estrutura estatutária da Funai atraíram para Brasília mobilizações indígenas, em razão da localização e funcionamento das novas Coordenações Regionais, dos Comitês Regionais e das Coordenações Técnicas Locais. A falta de consulta prévia aos povos indígenas sobre esta nova estruturação e a ausência de subsídios didáticos para que os povos indígenas fossem esclarecidos contribuíram para estas tensões iniciais,
que agora poderão ser superadas em entendimentos locais, negociados pelo presidente da Funai com as delegações dos povos indígenas descontentes e preocupados.

Já no Poder Judiciário, decisões liminares concedidas pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) reacenderam as preocupações quanto à adoção do "marco temporal de ocupação", como fundamento destas decisões liminares em impugnações, por intermédio de mandados de segurança e ações cautelares: contra decretos de homologação de demarcação de terras indígenas, como no caso da TI Anaro, em Roraima (um mandado de segurança) e TI Arroio Korá, no Mato Grosso do
Sul (três mandados de segurança); pelo Estado de Roraima, em relação à ocupação indígena da TI Serra da Moça (uma ação cautelar); e contra procedimento administrativo de demarcação da TI Cachoeirinha, do povo Terena, no Mato Grosso do Sul (uma ação cautelar).

Invocando o entendimento adotado no julgamento da ação popular contra a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o presidente do
STF, Gilmar Mendes, sensibilizou-se com as alegações de que os índios Wapichana, Kaiowá/Guarani, Macuxi e Terena, respectivamente, não estariam nas posses das terras em 5 de outubro de 1988, que a administração pública federal e suas comunidades entendem serem por elas tradicionalmente ocupadas.

Com isso, suspendeu os efeitos de duas das nove homologações de
demarcações decretadas pelo presidente da República em dezembro de 2009 e deferiu cautelares em relação aos casos envolvendo as comunidades indígenas Serra da Moça e Cachoeirinha, adotando como fundamento o referido "marco temporal de ocupação".

Nestes casos, como se dá no mandado de segurança impetrado em julho
de 2005, contra a homologação da demarcação da TI Ñande Ru Marangatu, tradicionalmente ocupada por comunidade do Povo Kaiowá/Guarani, cujo relator é o atual vice-presidente e futuro presidente do STF, Min. Cezar Peluso, espera-se que o STF considere que as
medidas judiciais utilizadas não se prestam para a solução de questões como as postas nestas impugnações, como tem sido a orientação predominante de sua jurisprudência. Por esta razão, nos casos citados, as comunidades indígenas tiveram suas posses cerceadas por ações ilícitas de invasores, aspectos que exigem confronto adequado e profundo de provas, insuscetíveis nos limites do mandado de segurança.

Além disso, como também foi bem consignado na Ementa do Acórdão
da Petição no 3388, referente ao caso Raposa Serra do Sol: "A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não
ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios".

A relevância do acompanhamento destas discussões judiciais reside na tentativa da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNAP) em obter a adoção, pelo STF, do "marco temporal de ocupação", como sendo a data do início da vigência da Constituição atual, em 5 de outubro de 1988, como súmula vinculante (PSV 49).

Também no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a delimitação da TI
Porquinhos, no MA, foi liminarmente suspensa por seu presidente, sensibilizado com alegações dos Municípios de Grajaú, Fernando Falcão, Formosa da Serra Negra e Barra do Corda, quanto "à possível ocorrência de erros formais no Relatório Circunstanciado de Delimitação e Identificação", no qual a Portaria do ministro da Justiça, de outubro de 2009 se fundamenta. A União e a Funai, sem prejuízo da participação da comunidade indígena do Povo Canela/Apãnjekra, têm o desafio no sentido de demonstrar a regularidade da identificação feita.

A tentativa da Funai em suspender a liminar concedida pelo TRF da 3ª
Região para que as identificações de terras indígenas em áreas ocupadas por particulares no Estado do Mato Grosso do Sul sejam precedidas de notificação a estes ocupantes, não foi acolhida pelo presidente do STJ. O tribunal teve como entendimento que não fora demonstrada lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. Com isso, os Grupos Técnicos da Funai constituídos para as identificações dos limites das
terras tradicionalmente ocupadas pelos Kaiowá/Guarani, no MS, que necessitarem ingressar em imóveis ocupados por não-índios deverão notificá-los previamente, até que a decisão do TRF da 3ª Região (SP e MS) seja revista.

O Congresso Nacional tende a concentrar suas atividades neste semestre
entre março e maio. A partir de junho, mês no qual são realizadas as convenções partidárias, que antecedem o registro das candidaturas e a campanha eleitoral, as atenções parlamentares e partidárias são inevitavelmente voltadas para o processo eleitoral. No entanto, importa manter a atenção sobre as proposições legislativas de interesse
dos povos indígenas, como o Estatuto dos Povos Indígenas, que, a depender de eventuais pressões políticas, em especial do Governo Federal, poderá ser incluído na ordem do dia a qualquer
momento.

Considerando estes acontecimentos e os desdobramentos políticos neste ano de eleições, é importante que os povos indígenas e seus aliados
mantenham-se atentos e mobilizados em especial neste primeiro semestre, que já indica importantes desafios e tensões em curso.

http://www.cimi.org.br/pub/publicacoes/1269524750_Porantim%20322-Final.pdf
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