Já se disse muitas vezes que São Paulo é "isso-aquilo", uma cidade "assim-assado", gigante, enorme, diversa, cheia de coisas dentro e fora dela. Mas ocorre que no bico de São Paulo, no extremo extremo sul da cidade, existe uma aldeia indígena, guarani. Uma, não, melhor dizendo: são duas, na verdade, uma do lado da outra, separadas por uma pequena pista, obviamente "de chão", que marca os primeiros metros de uma estrada: a Estrada do Curucutú.
No norte da cidade, existe também outra aldeia, e também guarani, que fica para outra ocasião. Você, bom leitor, retrucará perante essa "informação": "nada mais me surpreende, depois do que tenho visto 'nesse mundo de meu deus'... Eu vi um mulato ser eleito presidente americano, um ex-metalúrgico re-eleito presidente do Brasil, vejo Dunga dirigindo a 'selecinha', vejo Dunga cortando o Gaúcho... Por que me surpreenderei com guaranis, onde quer que eles estejam?".
Muito bem. Houve tempo em que, de fato, o estranho, por aqui, era ver-se portugueses. Embora talvez retruque com palavras talvez como essas, ou "arre, lá vem outra vez esse papo de Brasil, diversidade, três raças"..., você há de se indagar, ainda que secretamente: "mas onde fica essa Estrada do Cu-ru-cu-tú"?
A Estrada da Curucutú se encontra 40 km ao sul da avenida Paulista. E são mesmo quarenta. Talvez até mais. Tomando-se um de nossos "bois metálicos", percorrem-se todos os quilômetros da via Marginal Pinheiros, toma-se, à frente, a avenida Robert Kennedy e, até que ela se acabe, segue-se nela então até outra avenida: avenida senador Teotônio Vilela. Até aí, mais uma vez, o leitor mais indisposto, novamente poderá objetar-me: "ah... caro cronista, isso aí é o que fazem, e cotidianamente, todos os santos habitantes do bairro de Parelheiros. E o fazem, repetindo, co-ti-di-a-na-men-te ".
Acontece que as aldeias Krukutu e Tenondé Porã, nem mesmo o pessoal de Parelheiros sabe bem onde elas ficam. Sabem assim por alto, que a coisa de fato existe. E costumam apontá-la com o beiço, daquela maneira cabocla. Sabem dizer que ela ficava "por ali", mas "um pouco para lá, mais um pouquinho". Cumpridas as léguas tiranas da já mencionada avenida senador Teotônio Vilela, rebatizada a certa altura avenida Sadamu Inoue -antiga Estrada de Parelheiros. Quem quiser se aventurar pelas paragens guarani-paulistanas deve tomar uma esquerda e, com força de vontade indômita, ingressar em uma via ainda mais sinuosa do que as já percorridas até aquele ponto. Uma via também chamada de "estrada": a Estrada da Colônia.
Curvinhas e mais curvinhas, morro acima, morro abaixo. Vencidos os seus mais de 10 km, o bravo e persistente aventureiro chegará finalmente à Estrada da Barragem. Correrá mais 2 km até, finalmente, a Estrada do Curucutú. Ufa! Daí, então, são mais 5 km até a segunda das aldeias guarani da região, aldeia em que Marcos Tupã come e dorme, geralmente. Foi lá que ele nos recebeu.
Mais ali, um pouco mais
Não dá para dizer que ele "viva" nessa aldeia, porque a vida de Tupã é nomadismo radical. Nascido noutra localidade guarani, na Boracéia, em São Paulo, ele foi criado em Ubatuba, com o pai, que não era mas tornou-se um cacique. Um cacique é uma espécie de diplomata, mediando a relação da aldeia com o mundo exterior, defendendo os interesses da comunidade. Um chefe político.
Em Ubatuba, Tupã, por pressões de seu pai, começou a preparar-se para a vida política. Estudou com os velhos da aldeia, até onde lhe foi possível. Circulava pelo litoral paulista. Queria aprender a ler e escrever. Alfabetizou-se na aldeia, com professores indígenas, mas "queria mais". Matriculou-se numa escola pública, escola normal, escola "de brancos". E aprendeu. Alfabetizou-se.
"Na época", ele conta, "não tinha escola pública, do Estado, em aldeia. O índio era um analfabeto. Pensava-se, como ainda pensam muitos, que o índio que aprende a ler, e escrever, deixa de ser índio".
Depois de recebidos por Tupã, estamos com ele sentados numa espécie de banqueta de cimento, sob um teto de palha circular, ovalado. O teto é apoiado em estrutura também de cimento. O espaço não é grande nem pequeno. É o prédio exatamente da escola da aldeia Krukutu, uma das conquistas posteriores de Tupã, dentro de sua militância política. Foi sob esse teto, essa sombra, que ele sugeriu conversarmos.
Sob a sombra do teto de palha-cimento, conversamos sobre o seu dia-a-dia de índio-paulista. Nosso encontro foi marcado para "depois do almoço", conforme a sugestão que ele nos fez. Chegou caminhando pela única entrada da aldeia, vestindo calça jeans e uma camisa azul. A pele avermelhada, queimada, morena, o sotaque ao falar português não deixam de pé qualquer dúvida quanto à sua condição cultural e espiritual de índio.
Chegou sorridente, carinhoso. Bastante atrasado. Desculpou-se pelo atraso. Falando conosco, foi inicialmente tímido. Começou com frases curtas. Percorrendo o caminho até o galpão em que funciona a "sua" escola, falava guarani com os mais velhos. Esses velhos eram índios invariavelmente pobres, sem nem sombra da agilidade que Tupã aparentava ter. "Essa aldeia não tem roça, nem de subsistência. Só uns peixes, lá embaixo", diz ele apontando uma braça da Represa de Guarapiranga, que está logo à frente da colina que descemos.
"O terreno é difícil. E a terra é pequena. A do norte de São Paulo é a menor terra indígena do Brasil. Essa aqui é uma das menores. A terra de Ubatuba, onde eu cresci, é grande. Bem maior. Lá tem várias plantações. E muito artesanato."
Amor e política
Depois de nos falar sobre as suas origens geográficas, falar com bom humor sobre a cobrança política do pai, Tupã continua de maneira engraçada. A conversa se extende. É pausada. Se arrasta. "Vocês querem saber da minha vida?", nos pergunta, à espera. Depois, ri miúdo. "Vou contar". E pausa. E começa. "Eu participei da política a minha vida toda. Tenho 40 anos. Viajei. Vi a luta dos velhos. Organizei a luta dos jovens. Os velhos gostavam que eu fizesse. E mandavam os jovens: 'vocês tem que ir lá falar com o Tupã, ajudar o Tupã". Os guaranis, ele diz, são o segundo povo índigena mais populoso do Brasil. O primeiro é Tikuna, norte do Amazonas.
Viajando por todo o país, visitando muitas comunidades, Tupã ia e vinha, entre a aldeia Boa Vista de Ubatuda e a aldeia Krukutu de Parelheiros. Krukutu tinha sido fundada por sua família: sua mãe, seu tio Manuel, seu avô. Quando estava com quase 18 anos, acontece que Tupã caiu de amores por Lidia, uma índia guarani, como ele. Nascida e criada na aldeia Krukutu. "Empolguei-me", conta ele. A moça era filha do cacique, Nivaldo. Tupã cozinhou, pensou e criou sua coragem para, como nos conta aos risos, "chegar no cacique". "Abri o jogo". E foi bem aceito.
Em Ubatuba, noutra viagem, foi contar a seu pai sobre a disposição de casar. "Vai casar?", disse o velho quando soube. "E a política, aqui?", cobrou. "Olha lá". Espremido entre o seu amor antigo, pela política, e o seu amor novo, pela moça, Tupã decidiu-se por levar a mulher. Foram para o litoral. Assim, poderia manter-se mais perto do pai, e dos seus afazeres. A cerimônia, o casamento, com o "aconselhamento", aconteceu no Krukutu. E durante sete anos, Tupã equilibrou-se na "estrada", mantendo seus vínculos com duas aldeias. Lidia, a mulher, era, segundo ele "muito apegada à terra de São Paulo". Viviam entre o mar e o planalto, como muita gente o faz. "Mas aqui, em São Paulo, já tinha energia elétrica. E lá, em Ubatuba, não tem até hoje", lembra.
Lídia não se adaptou à falta da energia, e o casamento esfriou. Esfriava seu primeiro casamento, mas não terminavam seus problemas. Naquele momento -isso foi, ele diz, há 15 anos- Tupã não estava dividido mais apenas entre duas aldeias, mas também entre duas mulheres. Do primeiro casamento, que estava minguando, havia perdido dois filhos e estava levando três: duas meninas e um menino. A nova mulher por quem tinha se apaixonado, a nova paixão que começava, era filha também de um cacique. Índia guarani, também, de São Paulo. Índia, também, da aldeia Krukutu de Parelheiros. Simplesmente, a irmã de sua primeira mulher.
"Guarani não tem costume de duas mulheres", diz Tupã, coçando a nuca. "Fugi da paixão uns dois anos, enfiado em Ubatuba. Mas não tinha jeito. Não passava. Quando eu tinha que vir, começava de novo". De volta outra vez a São Paulo, outra vez abriu o jogo com Nivaldo, o cacique, seu "quase" ex-sogro. Queria se casar com outra das suas queridas filhas, Francisca. A moça já sabia. Namoricavam de leve, nas idas e vindas de Tupã. E o cacique novamente concordou. Assentiu. "Ele achava que eu era um bom partido", ri. Mas impôs-lhe a condição de que fossem embora, se mudassem dali.
Tupã, de mala e cuia, foi mais uma vez para Ubatuba. E mais uma vez o casamento ficou ameaçado, dessa vez por culpa dos borrachudos. Tupã se tornou cacique, em Boa Vista, e as viagens também aumentaram. Foi muito a Brasília. Rodou mais ainda o Brasil. Organizou mais batalhas por escola. E também, conta ele, começou a batalhar pela saúde: "O índio, no hospital, não era nada. Chegava doente. Diziam que a responsabilidade era da Funai".
Quando, em 1999, Marcos Tupã deixou enfim de ser cacique, Francisca o "botou na parede": "Vamos para São Paulo". Ponto final. Voltaram para o Krukutu. E assim, entre altos e baixos, entre serras e mares, Tupã fixou residência no sul da metrópole paulistana. "Parou?", perguntamos a ele. "Mais ou menos. Hoje fico entre essas quatro aldeias: as duas daqui, a do norte de São Paulo e Boa Vista, de Ubatuba. Novas coisas devem acontecer. Recebemos uma terra do governo, uma compensação pela obra do Rodoanel". O trecho sul do Rodoanel paulista passa a 8 km da aldeia.
"Eu era ligado a essa aldeia, que tinha sido criada pela minha família. Minha mãe tinha criado essa aldeia, com meu tio Manuel e meu avô. Mas quando eu cheguei aqui de vez, não tinha nada. Só tinha a casinha de reza, diz ele, apontando a construção de taipa indígena, raro exemplar de uma arquitetura popular cabocla, paulista, desaparecida". Na casa, toda noite se reúnem os guaranis do Krukutu: se juntam ali para dançar, cantar, fazer fogo, tomar mate.
"Quando viemos", conta Tupã, finalmente apresentando-nos Francisca, "aí começamos a organizar as coisas". "A aldeia tinha muito problema de água. É cheia de água aí em volta", diz ele, buscando concordância e apontando novamente para a braça da represa: "mas aqui, aqui em cima, não tem. Furamos um poço artesiano, na entrada, com ajuda do governo. Montamos o posto de saúde. E a escola". Escola que não poderia faltar: pois Tupã, não por acaso, é conhecido entre seu povo como um dos maiores militantes comunitários pela causa da educação indígena.
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