Movimentos sociais e ONGs do Brasil, Peru e Bolívia discutiram dinâmicas fronteiriças

Página 20 - http://pagina20.uol.com.br/ - 19/12/2009
A tríplice fronteira Brasil-Peru-Bolívia foi tema de encontro entre representantes de movimentos sociais e organizações não-governamentais de 25 a 27 de novembro no Centro de Formação dos Povos da Floresta (CFPF), em Rio Branco. A reunião "Dinâmicas Transfronteiriças na região Acre/Brasil - Peru: o papel das ONGs e futuras parcerias binacionais" foi promovida pela Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/AC) e a SOS Amazônia.

O Encontro teve por objetivo apresentar informações atualizadas sobre projetos de desenvolvimento e integração e atividades ilegais em curso na fronteira; debater os impactos que essas ações trazem nas comunidades indígenas e extrativistas da região; trocar informações sobre as ações das organizações sociais e não-governamentais na fronteira; e criar uma agenda de trabalho para o ano de 2010 com base nas demandas apresentadas durante as discussões.

Participaram da reunião ONGs dos três lados da fronteira, organizações e associações indígenas e extrativistas e lideranças das unidades de conservação (UC) e terras indígenas (TI) do Acre e Peru. O encontro contou com o apoio da Rainforest Foundation Noruega (RFN) e da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA).

No primeiro dia, a título de contexto, o antropólogo Marcelo Piedrafita Iglesias apresentou informações atualizadas sobre as agendas bilaterais dos governos brasileiro e peruano para essa região de fronteira, os projetos de infra-estrutura em curso e planejados no âmbito do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e da IIRSA (Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura Regional da América do Sul), dentre elas, a agora anunciada estrada Pucallpa-Cruzeiro do Sul, e as atividades de sísmica previstas pela Agência Nacional do Petróleo (ANP) em 2010-2011, como nova etapa da prospecção de petróleo e gás no Vale do Juruá. Em relação ao lado peruano, mostrou os impactos que a política de concessão petrolífera, feita sem qualquer consulta, e a atividade madeireira, legal e ilegal, têm causado sobre territórios indígenas e unidades de conservação em ambos os lados da fronteira internacional. Abordou ainda a situação dos índios isolados, também ameaçados por essas atividades, do que resultou a recente migração de um desses povos, ou de parte dele, do lado peruano para o alto igarapé Xinane, na TI Kampa e Isolados do Rio Envira, no Estado do Acre.

Os impactos causados na floresta e nos seus habitantes por essas obras de infra-estrutura, especialmente pela pavimentação da Rodovia Interoceânica, foram apresentados no segundo dia por Elza Mendoza, representante do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Elza abordou especificamente a região trinacional Madre de Deus, Acre e Pando (MAP). Para ela, "a grande vilã da região é a estrada, que traz desmatamentos, queimadas e o narcotráfico. Os governos, os políticos e a imprensa só destacam o lado bom dessas obras, sem discutir os problemas atuais e aqueles que futuramente advirão".

As atividades realizadas pela CPI/AC em 2009 - como o "XI Encontro do Grupo de Trabalho para a Proteção Transfronteiriça (GTT) da Serra do Divisor e Alto Juruá - Brasil/Peru" e a "1ª Oficina de Informação e Sensibilização sobre os Índios Isolados na TI Kaxinawá do Rio Humaitá" -, foram apresentadas pela coordenadora executiva da instituição, Malu Ochoa. Promovidas pelo Programa de Políticas Públicas e Articulação Regional, por meio do projeto Fortalecimento dos Povos Indígenas para a Conservação da Biodiversidade na Fronteira Acre/Brasil - Peru, essas ações visam "empoderar a atuação das organizações indígenas nas discussões sobre o planejamento, execução e avaliação de políticas públicas nessa região de fronteira e fortalecer as políticas de proteção aos povos isolados", afirmou Malu.

A SOS Amazônia também mostrou seus trabalhos com os moradores de reservas extrativistas, do Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD) e de outras unidades de conservação situadas em áreas de fronteira, dentre eles, a promoção de oficinas de capacitação de técnicos de governo e lideranças comunitárias, a elaboração participativa de planos de manejo, o fortalecimento institucional de organizações de representação de extrativistas e agricultores, o monitoramento de quelônios e o intercâmbio entre esses manejadores.

Outras instituições não-governamentais, como a Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC) e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), do Brasil, a Herencia, da Bolívia, e o Instituto del Bien Comum (IBC) e Fundación Peruana para la Conservación de la Naturaleza (ProNaturaleza), do Peru, também apresentaram suas ações.
Terras indígenas e unidades de conservação

Durante a reunião, lideranças das terras indígenas localizadas na fronteira do Acre com o Peru, ou atingidas por obras de infra-estrutura, deram depoimentos sobre os problemas enfrentados em suas terras como resultado das dinâmicas de integração entre o Brasil e o Peru e de diferentes atividades ilegais. Estiveram presentes representantes das Terras Indígenas Mamoadate, Kaxinawá-Ashaninka do Rio Breu, Kaxinawá do Rio Jordão e Kaxinawá do Seringal Independência, Cabeceira do Rio Acre, Kaxinawá do Rio Humaitá e Kaxinawá do Igarapé do Caucho.

Francisco Ninawá Huni Kui, morador da TI Kaxinawá do Rio Humaitá, trouxe informações sobre as recentes visitas de índios isolados na aldeia Novo Futuro. Segundo Ninawá, desde agosto, os isolados têm se aproximado da sua comunidade, no alto rio Humaitá. "Essa é uma preocupação de longa data, mas hoje está pior. Não sabemos o que eles querem e temos medo de acontecerem conflitos". Esses povos isolados, hoje habitantes do território brasileiro, vieram do Peru, fugindo da ação de madeireiros na Reserva Territorial Murunahua e no Parque Nacional Alto Purús. O antropólogo Terri Valle de Aquino reforçou a necessidade da construção de políticas binacionais para a proteção dos isolados e dos seus territórios. E destacou a importância das oficinas que a Frente de Proteção Etnoambiental Rio Envira, da Coordenação Geral de Índios Isolados, da FUNAI, pretende continuar a realizar junto aos povos que hoje compartilham terras com os isolados e como os demais moradores do entorno dessas terras, com o objetivo de evitar que novos conflitos possam ocorrer.

Outro problema recorrente na região fronteiriça tem sido o tráfico de drogas. Jaime Lhulhu Manchineri, da TI Mamoadate, localizada na fronteira do Município de Assis Brasil com o Peru, conta que um grupo de peruanos foi preso pelos Manchineri transportando 13 kg de pasta base de cocaína. "Na nossa terra há muitas ameaças de narcotráfico. Por três vezes os peruanos chegaram lá pelo rio Iaco e foram entregues por nós à Polícia Federal, sem contar que madeireiros de Inãpari (cidade do Peru que faz fronteira com Assis Brasil) já entraram no Mamoadate", conta.

Situações semelhantes também foram relatadas por Júlio Raimundo Isudawa, liderança Jaminawa da TI Cabeceira do Rio Acre, que também citou os prejuízos causados pela intensa atividade de pesca ilegal em curso naquele rio, feita por peruanos e brasileiros, e por invasões promovidas por madeireiros peruanos do lado brasileiro da fronteira.

Representantes das comunidades Ashaninka do rio Tamaya e do alto rio Amônia, do lado peruano, também participaram do evento. As lideranças da Comunidad Nativa Sawawo Hito 40, situada no alto rio Amônia, mostraram a grave situação pela qual o seu povo está passando atualmente. Acompanhado por três parentes, João Ashaninka contou que, no início da década, a empresa madeireira Forestal Venao SRL se instalou na sua terra prometendo melhorias para o povo. Hoje, após o esgotamento de toda a madeira nobre, dos impactos causados sobre a floresta e da rarefação das caças e dos peixes, "não temos nenhum tipo de apoio por parte do governo peruano e nem de organizações indígenas, porque os madeireiros compram essas organizações. Ganhamos muito dinheiro no tempo da madeira, mas vimos que isso não trazia resultado de futuro. Hoje passamos necessidade e estamos em busca de novas alternativas, tentando iniciar um diálogo com nossos irmãos Ashaninka da comunidade Apiwtxa".

O encontro contou com a presença de Edwin Chota Valera, dirigente da Asociación de Comunidades Nativas Ashaninka Asheninka de Masisea y Callería (ACONAMAC), que apresentou um comovente vídeo sobre as trágicas conseqüências da atividade madeireira ilegal sobre as comunidades Ashaninka nos rios Tamaya e Callería, ainda hoje não regularizadas.

Além dos indígenas, foram ouvidas também lideranças da Reserva Extrativista do Alto Juruá (REAJ), do Parque Nacional da Serra do Divisor e representantes de organizações e associações de extrativistas, dentre elas, a Associação Porfírio Porciano (Foz do Paraná dos Mouras), a Associação Praia da Amizade, a Associação de Seringueiros e Agroextrativistas do Grajaú (ASAG), a Amigos das Águas do Juruá (AMAJ) e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rodrigues Alves.

Sebastião Aragão, morador do Parque Nacional da Serra do Divisor e membro do Conselho Consultivo do Parque, conta que não há fiscalização e existem caminhos abertos no parque para o transporte ilegal de drogas, feita por brasileiros e peruanos. "A Polícia Federal entrou em contato, mas até hoje não chegaram. Sozinhos, não temos condições de fiscalizar. E o desmatamento já chegou à fronteira. Há grandes derrubadas de madeira de lei e de palmeiras no lado peruano", denuncia.
Mudanças climáticas

A partir do XI Encontro do GTT, ocorrido entre os dias 30 de junho a 03 de julho de 2009, no Centro Yorenka Ãtame, a pauta de discussões do Grupo de Trabalho para Proteção Transfronteiriça da Serra do Divisor e Alto Juruá (Brasil-Peru) passou a incluir as mudanças climáticas que o planeta e essa região vêm sofrendo nos últimos anos. Esta temática ganhou relevância porque os impactos ambientais causados pelos grandes projetos de infra-estrutura, a exploração de petróleo e gás e o desmatamento na Amazônia colaboram para as mudanças do clima, que, cada vez mais, têm sido sentidas nas aldeias e comunidades.
Para tratar deste assunto, convidou-se o professor Foster Brown, da Woods Hole Research Center (WHRC). Na sua apresentação, mostrou indícios de que o planeta passa por um processo de aquecimento e falou das consequências, atuais e futuras, para as populações que vivem nas florestas acreanas. "Eu me pergunto: como será a situação das aldeias e das comunidades daqui a 20 ou 30 anos? A população crescerá. A pergunta é se a geração de hoje está planejando o futuro dessas crianças", afirma.
Agendas binacionais para 2010

No último dia do encontro, os representantes dos movimentos sociais e das ONGs se distribuíram em quatro grupos para discutir propostas e demandas das comunidades dos dois lados da fronteira, tendo por eixo as temáticas da conservação da biodiversidade e do desenvolvimento econômico/sustentável. As reivindicações incluíram a realização de novas oficinas e intercâmbios; o fortalecimento da segurança alimentar, por meio do manejo dos recursos naturais; cursos para o conhecimento da legislação ambiental e sobre o direito de consulta prévio, livre e informado, previsto em convenções e tratados dos quais o Brasil é signatário; parcerias e articulações com organizações e governos locais, estadual e federal para a vigilância dos territórios, dentre outras.

O próximo passo da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/AC) e da SOS Amazônia - instituições organizadoras do evento - é a análise dessas demandas para a construção de uma agenda de trabalho conjunta para o ano de 2010, com vistas à dar continuidade às ações do Grupo de Trabalho para a Proteção Transfronteiriça da Serra do Divisor e Alto Juruá (Brasil e Peru), que coordenam desde 2005.

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PIB:Rondônia

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