O juiz Federal da 20ª Vara do Distrito Federal, Juliano Taveira Bernardes, julgou procedente a Ação Declaratória proposta pela Comunidade Indígena Waurá, reconhecendo a Terra do Batovi como área tradicionalmente ocupada pelos índios. Esta decisão representa um reconhecimento oficial do Judiciário sobre o direito originário das comunidades indígenas sobre as suas terras tradicionalmente ocupadas, gerando, portanto, um precedente positivo para futuras decisões em casos semelhantes.
ISA
Quando o Parque Indígena do Xingu (PIX) foi criado, na década de 60, uma parte do território tradicionalmente ocupado pelos Waurá, a Terra Indígena Batovi, foi excluída da demarcação (confira no mapa ao lado). Nos anos 70, após tomarem conhecimento da exclusão de parte de suas terras dos limites do Parque Indígena do Xingu, os Waurá tentaram exaustivamente obter da Fundação Nacional do Índio (Funai) o reconhecimento sobre elas.
Em 1992 o Núcleo de Direitos Indígenas (NDI), uma das instituições que deram origem ao ISA, ajuizou Ação Declaratória contra a Funai e a União Federal para que a referida área fosse declarada como de ocupação tradicional dos índios, agilizando a demarcação oficial. A empresa Batovi Agropecuária S.A. interveio no processo, alegando, com base em documentos cartoriais, que a terra em questão era sua propriedade.
A Funai, embora tenha contestado a ação, declarou e demarcou administrativamente a Terra do Batovi como terra indígena, homologada pelo Decreto Presidencial de 8 de setembro de 1998. A Funai reconhecia, portanto, que os Waurá tinham razão. Finalmente, em maio de 2002 - dez anos após o ajuizamento da ação - o Judiciário reconheceu o direito territorial dos Waurá, anulando o título de propriedade da Batovi Agropecuária S.A.
Embora a demarcação tivesse sido concluída - e o problema dos Waurá resolvido - havia muitos anos, essa decisão judicial, além de consolidar o dever da União Federal e da Funai de fiscalizar e proteger o patrimônio dos Waurá, gera importante precedente para comunidades indígenas que ainda têm pendências com a Funai ou com terceiros em relação a seus direitos territoriais.
(Veja abaixo a íntegra da decisão)
ISA, 10/06/2002
AÇÃO ORDINÁRIA/OUTRAS - PROCESSO No 92.0013080-1
AUTORA: COMUNIDADE INDÍGENA WAURÁ
RÉUS: UNIÃO FEDERAL E FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI e eventuais interessados.
OPOSIÇÃO PROCESSO N o 95.0009554-8
OPOENTE: BATOVI AGROPECUÁRIA S/A
RÉUS: COMUNIDADE INDÍGENA WAURÁ, UNIÃO FEDERAL E FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI
SENTENÇA
I - RELATÓRIO
Trata-se de ação declaratória, sob rito ordinário, ajuizada pela COMUNIDADE INDÍGENA WAURÁ, objetivando o reconhecimento oficial do caráter indígena da área denominada "Terra do Batovi", por ela ocupada.
Alega, em síntese, que a área mencionada se enquadra no conceito legal de terras indígenas (art. 231 § 1o, da CF), elemento autorizador da providência jurisdicional buscada nestes autos. Aduz, ainda, que a inexistência de demarcação da área em tela tem causado incerteza jurídica quanto à responsabilidade de fiscalização, proteção e respeito a seus direitos.
Em apenso, a empresa BATOVI AGROPECUÁRIA S/A ofereceu oposição em face das partes constantes da ação ajuizada pela Comunidade Indígena Waurá (Processo n.o 959554-8), objetivando assegurar o reconhecimento de sua posse e domínio sobre área denominada de "Batovi".
Para tanto, alegou "ostentar há mais de 40 (quarenta) anos, por si e seus antecessores, o domínio pleno e exclusivo da referida área, que se encontra encartada em área maior que encerra, aproximadamente, 19.629 hectares." (fls. 06).
Do processo principal, merecem constar do relatório os seguintes fatos:
A FUNAI apresentou contestação às fls. 50/56.
Devidamente citada, a União Federal apresentou contestação às fls. 64/67.
Réplica às fls. 72/76.
Nomeado curador especial para os réus citados por edital (fl. 129).
Juntado aos autos o laudo antropológico ( fls. 17/307), sobre o qual se manifestaram as partes (fls. 320/321, 330, 332).
A empresa BATOVI AGROPECUÁRIA S/A informa que ofereceu oposição contra as partes desta demanda (Processo n.o 95.0009554-8)
Alegações finais da Autora e da União Federal às fls. 336/339 e 341.
O Ministério Público Federal às fls. 354/356 manifestou-se pela extinção do feito, com julgamento do mérito, diante do reconhecimento do pleito inicial operado pelo pólo passivo com a promulgação da Portaria 1.026/97, da lavra do Ministério da Justiça.
Da oposição interposta pela empresa BATOVI AGROPECUÁRIA S/A (Processo n.o 95.0009554-8), destaco os seguintes acontecimentos:
Devidamente citadas, a Comunidade Indígena Waurá, a Funai e a União Federal apresentaram contestações, respectivamente, às fls. 86/123, 125/187, 189/235, defendendo, em síntese, que a Terra do Batovi é terra indígena de ocupação tradicional dos Waurá.
Réplica às fls. 226/229.
Alegações finas da Comunidade Indígena Waurá às fls. 244/252.
Manifestação do Ministério Público Federal às fls. 265/272.
II - FUNDAMENTAÇÃO
Busca o pólo ativo, nos autos do processo principal (Processo n.o 92.13080-1), seja declarada como terra tradicionalmente ocupada por sua comunidade a área de 5.200 ha denominada de Batovi. De sua vez, com oposição pretende a empresa BATOVI AGROPECUÁRIA S/A assegurar o reconhecimento de sua posse e domínio sobre a mesma área.
Deve o processo ser julgado na mesma oportunidade (art. 59 do CPC). Por isso, antes apreciar a oposição, registro fato relevante às duas ações.
Refiro-me à Portaria 1.026, de 1o de outubro de 1997, pela qual o Ministro da Justiça, considerando proposta apresentada pela Fundação Nacional do Índio, declarou a Terra de Batovi como área de posse permanente dos índios Waurá, determinando a demarcação administrativa da referida área (fl. 368). Posteriormente, a demarcação da terra sub judice realizada pela FUNAI foi homologada pelo Decreto Presidencial de 8 de setembro de 1998. Confira-se:
"DECRETO DE 8 DE SETEMBRO DE 1998.
Homologa a demarcação administrativa da Terra Indígena Batovi, localizada no Município de Paranatinga, Estado de Mato Grosso.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 19, § 1o, da Lei n.o 6.001, de 19 de dezembro de 1973, e no art. 5o do Decreto n.o 1.775, de 8 de janeiro de 1996..
DECRETA:
Art 1o. Fica homologada a demarcação administrativa, promovida pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI, da terra indígena destinada à posse permanente do grupo indígena Waurá, a seguir descrita: a Terra Indígena denominada BATOVI, com superfície de cinco mil, cento e cinqüenta e oito hectares, noventa e oito ares e dezessete centiares e perímetro de cinqüenta mil, oitocentos e quarenta e cinco metros, oitocentos e noventa e sete milímetros, situada no Município de Paranatinga, Estado de Mato Grosso, circunscreve-se aos seguintes limites: NORTE/LESTE: partindo do Marco MC-58, de coordenadas geográficas 12o53'24,5" S e 53o53'53',5"Wgr., localizado na confluência do Rio Bacaeri com o Rio Tamitatoala ou Batovi, segue pelo Rio Bacaeri, a montante, até o Marco MC-57, de coordenadas geográficas 12o59'56,6" S e 53o54'59,7"Wgr., localizado em sua margem direita; SUL: do Marco antes descrito, segue por segmentos de reta, com os seguintes azimutes e distâncias planos: 269o21'13" e 1.141,71 metros até o Marco M-6; 269o24'37" e 1.000,79 metros até o Marco M-5; 269o24'54" e 1.000,87 metros até o Marco M-4; 269o22'36" e 1.001,04 metros até o Marco M-3; 269o20'52" e 1.000,68 metros até o Marco M-2; 269o04'31" e 1.010,65 metros até o Marco M-1 e 269o57'09" e 1.087,51 metros, até o Marco MC-59, de coordenadas geográficas 12o59'52,7" S e 53o59'00,9"Wgr., localizado na margem direita do Rio Tamitatoala ou Batovi; OESTE: do marco antes descrito, segue pelo referido rio, a jusante, até o Marco MC-58, início da descrição deste perímetro. A base cartográfica utilizada refere-se às folhas: SD.22-V-A-IV e SD.22-V-C-I - Escala 1:100.000 - DSG - 1980.
Art 2o. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação."
Portanto, a edição desse decreto implica o reconhecimento da improcedência do pedido da Opoente.
É que somente subsistiria a questão dominial trazida pela empresa Batovi Agropecuária S/A se se atribuísse natureza constitutiva à demarcação das terras indígenas realizadas pela FUNAI. No entanto , a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios tem natureza meramente declaratória, conforme bem aponta JOSÉ AFONSO DA SILVA (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 831):
(...) De qualquer forma, não é da demarcação que decorre qualquer dos direitos indígenas. A demarcação não é título de posse nem de ocupação de terras. Como mencionamos há pouco, os direitos dos índios sobre essas terras independem da demarcação. Esta é constitucionalmente exigida no interesse dos índios. É uma atividade da União, não em prejuízo dos índios, mas para proteger os seus direitos e interesses. Está dito: competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (art.231).
Daí, atendidas as condições, fixadas pelo art. 231, § 1o, da CF, serão apenas reconhecidos aos índios os direitos originários sobre terras que tradicionalmente ocupam.
Logo, estando comprovado tratar-se de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, conforme as conclusões do laudo pericial, corroborado pela posição do Poder Público, são inválidos os atos contrários à efetividade dos direitos indígenas sobre a área denominada de Batovi, entre os quais se pode incluir o registro imobiliário realizado em nome da Opoente. De fato, consoante dispõe o § 6o do art. 231 da CF.
" São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito à indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé."
De conseguinte, sendo nulo o título de propriedade ostentado pela Opoente, o pedido da oposição é improcedente.
Por sua vez, em relação a ação principal, a edição da Portaria 1.026/97 e do Decreto de 8 de setembro de 1998 traz duas conseqüências. Em face dos eventuais interessados no objeto da demanda, implica a perda do objeto; da União e da Funai, o reconhecimento da procedência do pedido, conforme já decidiu o Tribunal Regional Federal da 1ª Região:
"PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA. DELIMITAÇÃO E DEMARCAÇÃO DAS TERRAS DOS ÍNDIOS TUKANO, ARUAK E MAKU. RECONHECIMENTO DO PEDIDO. EXTINÇÃO DO PROCESSO COM JULGAMENTO DO MÉRITO.
Declarando a União Federal, pelas portarias ns. 1.558 e 1.559, ambas de 13 de dezembro de 1995 ser de posse permanente dos índios as terras que menciona, tal como pedido pelo autor, em setembro de 1993; e baixando a FUNAI a Portaria n.o 1.247, de 16 de dezembro de 1993, criando um Grupo Técnico "com a finalidade de identificar e delimitar a área indígena Médio Rio Negro ", na verdade, reconheceram o pedido do autor".
(TRF 1o Região, 3o Turma, AC 1997.01.00.019801-2/DF, Relator Juiz Tourinho Neto, DJ 06/02/1998, PG.219)
III- DISPOSITIVO
Por todo exposto:
A)JULGO IMPROCEDENTE A OPOSIÇÃO (Processo 95.0009554-8) ofertada pela empresa Batovi Agropecuária S/A, condenando-a ao pagamento das custas e de honorários advocatícios, em favor do pólo passivo, ora fixados em R$ 500,00 ( quinhentos reais).
B)Por perda do objeto, em relação aos eventuais interessados no objeto da demanda, JULGO EXTINTO O PROCESSO PRINCIPAL (n.o 92.0013080-1), SEM JULGAMENTO DE MÉRITO;
C)Em relação à União e à Funai, JULGO EXTINTO O PROCESSO PRINCIPAL, COM JULGAMENTO DO MÉRITO, nos termos do art. 269, II, do CPC, condenando-as ao ressarcimento das custas e despesas processuais, bem como ao pagamento de honorários advocatícios ora fixados em R$ 1.000,00 (mil reais), pro rata
Cópia ao processo em apenso.
P.R.I.
Brasília, 8 de maio de 2002.
.JULIANO TAVEIRA BERNARDES
Juiz Federal em exercício na 20ª Vara/DF.
PIB:PIX
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