Índios Ikpeng, no Xingu, inauguram museu na aldeia

Terra Magazine - http://terramagazine.terra.com.br/ - 13/12/2010
A aldeia Ikpeng Moygu, no Parque Indígena do Xingu, está em festa. Os velhos andam animados, de lado pra outro. Crianças esfuziantes - algumas apenas tratam o cotidiano como mais um dia de brincadeira. Adultos em corre-corre para que tudo esteja certo como planejam.

Fim de ano no Xingu. Muita gente enfeitada, corpos pintados, plumas sofisticadas, colares. Vozes afiadas pros cantos. E nesse último final de semana, um evento especial: a inauguração de um museu na aldeia, a Mawo - Casa de Cultura Ikpeng. Uma parceria da Associação Indígena Moygu Comunidade Ikpeng com o Instituto Catitu - Aldeia em Cena e o Museu do Índio/Funai, financiado pela Petrobras.

Sexta-feira, 10 de dezembro. Pela manhã, a festa Tagakteramo aquece as expectativas da sequência de cerimônias que marcam aos festejos. Orgulhosos da bela cultura, dançam e cantam no pátio central da aldeia, entram nas casas em fila, ecoam os cantos do pajé Araká e do coral de mulheres - capitaneadas pela anciã Airé, a principal cantora, parteira, avó e conhecedora das tradições. Festejar é coisa que os Ikpeng, um povo guerreiro com fama de bravo, sabe fazer.

Tradição e modernidade convivem de forma harmônica, na sabedoria dos jovens que lidam com dois universos tão distantes. Como Kumaré Ikpeng, presidente da associação, coordenador local da Funai, agente de saúde e cineasta. "O povo Ikpeng luta pela preservação da terra e da cultura, é um povo que se preocupa", diz. E apresenta sua aldeia: "Esse é um pedacinho do paraíso que a gente está tentando preservar".

No cair da tarde, dentro da linda casa construída com o esmero de arquitetura tradicional, é projetado o filme Som Tximma Ikpeng (Gravando o som), de Kamatxi e Karané, com paricitação da Mari Correa. Essa é a sua primeira sessão oficial. O "lançamento" - literalmente, "aldeia em cena", diz Mari.

As cenas de Gravando o som foram feitas na própria aldeia, e assisto ao lado de vários atores que se reconhecem, por meio de risadas, na tela. Finda a sessão, a mesma casa vira palco para a festa chamada Moyngo. Seguem cantos, seguem danças.

Logo que amanhece, a aldeia Moygu recebe a visita dos povos vizinhos kisedje e kawaiwete, de jovens que vieram receber o diploma de formatura do ensino médio - e segue nova apresentação de canto e dança para celebrar.

Mas o motivo mesmo do encontro é a inauguração da "Mawo - Casa de Cultura Ikpeng". "Um espaço na aldeia para arquivo do material que eles estão produzindo, e também para produção e difusão audiovisual", explica Mari, parceira que trabalha há anos junto dos Ikpeng.

O povo Ikpeng teve o primeiro contato com a sociedade nacional no início da década de 1960, junto dos irmãos Cláudio e Orlando Villas Boas. As consequências dessa aproximação com a sociedade nacional, que ocorria pela invasão de garimpeiros do território, foram terríveis para eles, dizimados por mortes por arma de fogo e por epidemias espalhadas pelos garimpos na região."Eles tinham sido atacados pelos garimperiros. Lá tinha ouro e diamante, e o território estava sendo invadido. Eles estavam muito fracos, não tinham mais roça, estavam doentes. Não tinham nem comida mais. Isso antes de ir para o parque", relembra Marina Villas Boas, enfermeira que os recebeu debilitados. A transferência foi uma necessidade, vislumbrada como a única saída pelos sertanistas. Foram transferidos para dentro do Parque do Xingu - inclusive tendo que viver próximo a tradicionais inimigos. Sentem-se, ainda hoje, exilados - está em curso a luta para recuperar a terra antiga, a Terra Indígena Jatobá. "Vai ser formidável eles conseguirem voltar. Agora que estão a salvos, se recuperaram, estão fortes", diz Marina.

Ao longo dos anos os Ikpeng recuperaram-se demograficamente, mantiveram o motor da cultura para enfrentar novos desafios e aliaram-se a novas tecnologias para que suas tradições não fossem perdidas. Ter acesso aos documentos de sua história, no entanto, eles viram que não era tão fácil.

"Quando estavam fazendo o filme Meu Primeiro Contato, tivemos dificuldade no acesso a imagens históricas dos Ikpeng, cenas dos primeiros contatos deles, da transferência para o Xingu. E eles perceberam que era importante estabelecer uma política de acesso e de uso desses materiais. Com pesquisadores que passam por aqui, instituições que trabalham com os índios", explica Mari. "Nem sempre a política de compartilhar essas informações é generosa", frisa.

Com a Mawo ao lado da aldeia, todo o material passa a ser de fácil acesso. As inúmeras gravações de áudio, fotografias, relatórios. Assim como o uso de novas tecnologias, aprendido através de oficinas de capacitação. Os originais vão ser conservados na sede do Museu do Índio/Funai, no Rio de Janeiro - com uso exclusivo dos índios. E na aldeia, copia de tudo para utilizarem na hora que precisarem.

A noite após a inauguração é longa e vai até o amanhecer. Araçá, com mais de sessenta, parece jovem. Canta e dança quase sem parar. São os pajés que puxam as músicas - e ele é o grande pajé do povo. Outros velhos cantores também entoam as músicas, enquanto os jovens fazem a percussão com chocalhos amarrados na perna, no ritmo das danças. No coral, e na companhia da dança, as mulheres cantoras.

"Eu estou estudando com o meu avô para me tornar cantor. Já tenho muitas pesquisas", diz Furigá Yaprigu, jovem liderança Ikpeng. Ele fala em tom humilde, de quem conhece a dificuldade que vem pela frente. Cantar, para este povo guerreiro, é um dos atributos mais exigentes. É preciso anos de prática, estudo e aprendizado.

"Meu avô aprendeu ouvindo as pessoas cantarem. Eu estou aprendendo de forma diferente. Eu tenho mp3 para gravar, eu tenho caderno e lápis para transcrever. Estou aprendendo as músicas. Você viu que eu estava cantando na festa. Nós, jovens, temos interesse em aprender a ser cantor, aprender a ser caçador, a ser arquiteto, historiador. A gente não quer perder o conhecimento. Queremos passar para nossos filhos, nossos netos. Como a gente está aprendendo dos nossos avós".

O trauma da transferência para o Xingu ainda assombra, principalmente, os velhos. Foram eles que deram início à luta pela retomada do território - cada vez mais ocupado por fazendas de soja. Hoje, a discussão política está com os jovens, que já fizeram expedições na área e acompanham de perto o processo na Funai. É no Jatobá que encontram as ervas medicinais, os peixes que preferem pescar, as melhores caças e, principalmente, aonde se desenha todo o universo deste povo. "Nós sofremos muita discriminação quando viemos para cá", lembra Araká.

"É lá onde está enterrada a minha placenta, onde estão enterrados meus parentes. Eu quero voltar", diz a anciã Airé. "A gente vai reconquistar o que é nosso", ecoa outro jovem guerreiro, Napiku Taleg.

Quando o avião decolou da aldeia, foram poucos minutos até começarem a aparecer desenhados no solo os geoglifos das lavouras de soja em meio à floresta. A área da terra Jatobá, que os Ikpeng pretendem, ainda está preservada - apesar de cerca de 30% já terem sido desmatadas.

Aquele pedacinho de paraíso que descreveu Kumaré quando nos encontramos na aldeia cada vez menos existe por aqui, lamento comigo olhando da janela do teco-teco.

A cultura segue firme, e as tecnologias estão sendo uma importante aliada, agora com a "Mawo - Casa de Cultura" para armazenar essa memória. Mas a natureza continua ameaçada e vulnerável. O espírito guerreiro dos bravos Ikpeng, firme nas tradições e com novas armas, vai ter que ser forte para conseguir proteger - ao menos o território antigo de onde foram transferidos.


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